Em uma casa de uma merendeira e um agricultor na zona rural de Pires Ferreira, no sertão do Ceará, nasceram seis professores.
"Meus pais diziam que educação e o conhecimento ninguém rouba", conta Milena Costa, de 24 anos, a filha mais nova da família e professora da rede municipal.
"Agora, estamos tendo a oportunidade de melhorar de vida."
Recém-aprovada no concurso para professor da cidade, Milena chora ao contar como, um a um, seus irmãos (quatro mulheres e um homem) foram mostrando que o caminho para mudar a realidade, mesmo em uma cidade de poucas oportunidades, passa pela educação.
A história da família Costa ilustra o papel que o ensino tem exercido na cidadezinha cearense de pouco mais de 10 mil habitantes, aos pés da Serra da Ibiapaba, perto da divisa com o Piauí.
O cartão de visitas dali — estampado em muros, placas e uniformes das crianças — é o resultado que a cidade vem registrando nos índices nacionais de educação.
Pires Ferreira recebeu nota 10 no último Índice Nacional de Educação Básica (Ideb) para os anos iniciais do ensino fundamental, a maior nota no Brasil.
O Ideb é o principal índice da educação básica do Brasil e é calculado com base em dois indicadores: a taxa de aprovação escolar; e as médias de desempenho nos exames aplicados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), no quinto e no nono ano do ensino fundamental e terceiro ano do ensino médio.
Ao mesmo tempo, a cidade é uma das mais pobres do Ceará e até do país.
No ranking do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que é a soma das riquezas produzidas pelo município dividido pelo número de habitantes, é o 5477º entre 5570 municípios.
No ranking de renda média de trabalhadores formais, é o 5532º, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os resultados expressivos da educação em Pires Ferreira, porém, fazem com que haja, entre analistas e a própria população, uma expectativa de que a situação da economia local mude no futuro próximo.
"Em algum momento, vai haver retorno", opina Victor Hugo de Oliveira, analista de políticas públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).
É certo que a economia de Pires Ferreira — movida pela pesca, agricultura e pequenas olarias — não vai absorver todos os estudantes que estão se formando e vão alçar voos em universidades e empresas longe dali.
Mas Oliveira argumenta que o resultado do bom desempenho da educação local pode vir de várias formas, seja com a volta de alguns profissionais qualificados ou, em última instância, com o desenvolvimento por tabela que esses filhos da terra levarão ao Estado ou ao país.
Mas, além de Pires Ferreira, o Ceará, de uma forma geral, tem se destacado nos rankings de educação há anos.
Qual o resultado concreto que já pode ser visto? E qual o segredo para se manter no topo?
Neste ano de eleições municipais, a BBC News Brasil visitou municípios que estão em primeiro e último lugar em rankings de indicadores sociais para investigar o que um país desigual como o Brasil pode aprender com seus extremos.
Além de Pires Ferreira, a reportagem foi à cidade pior colocada no ranking do Ideb — Manaquiri, no Amazonas (.
Outra equipe visitou os municípios com melhor e pior colocação no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) — São Caetano do Sul (SP) e Melgaço (PA) (leia aqui).
Dona de uma papelaria no centro de Pires Ferreira, a professora Patrícia Marques, de 31 anos, já rodou o Ceará para espalhar a experiência das escolas da cidade.
“Por conta que nós somos uma cidade pequena, as cidades maiores ficam pensando ‘poxa, como assim vocês se destacam? Não faz sentido’", diz Patrícia.
"Mas, para a gente, faz sentido, porque, por ser essa cidade pequena, todo mundo se conhece, então todo mundo se ajuda.”
Patrícia fez parte de um projeto no Ceará em que professores de escolas bem ranqueadas em provas estaduais de avaliação precisam visitar as escolas mal avaliadas para traçar estratégias que as façam se aproximar das metas.
Esse é um dos braços que fez a política educacional cearense ter tido bons resultados nos últimos anos, explica o economista Victor Hugo de Oliveira, do Ipece.
Em 2007 e 2008, o Ceará lançou mão de duas importantes medidas que são consideradas pontos de inflexão no contexto da educação.
Primeiro, o chamado programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), que tinha como objetivo priorizar a alfabetização dos alunos até o final do 2º ano do ensino fundamental.
A ideia era oferecer à educação municipal estratégias para esses anos iniciais, além de incentivar as cidades a adotar medidas de cooperação, condicionando isso ao recebimento de prêmios em dinheiro para escolas.
Depois, veio a necessidade de incorporar uma maneira de incentivar municípios a ter melhores resultados de educação.
A ideia veio por meio do repasse do ICMS, o imposto estadual sobre a circulação de mercadorias e a prestação de serviços.
Um Estado é obrigado a repassar parte do que é arrecadado às cidades, mas é livre para escolher os critérios — como o tamanho da população, por exemplo.
No Ceará, ficou decidido que os resultados educacionais seriam um fator para a escolha de qual município ganha mais.
“A ideia foi: o Ceará vai incentivar os municípios a melhorar a educação com aporte de mais recursos com melhores resultados, mas, ao mesmo tempo, vai prover um caminho para eles conseguirem melhorar”, explica Oliveira.
Esse valor não precisa ser obrigatoriamente reaplicado na educação. Pode ser direcionado a qualquer área da cidade.
Os resultados dessa política, que não foi descontinuada desde então e foi incorporada pelas próprias cidades, têm ajudado o Ceará a sanar deficiências históricas.
Um exemplo é a média de anos de estudo da população cearense. Entre os jovens de 15 a 24 anos — ou seja, os que já foram de fato atingidos por essa política educacional —, a quantidade de anos de escola superou a média do Brasil pela primeira vez em 2024.
"Nossa cidade agora está tendo a oportunidade que aqueles mais velhos, como os meus pais, há alguns anos infelizmente não tiveram", conta a professora Milena Costa.
O Ceará também tem tido sucesso em reverter maus resultados históricos da chamada distorção idade-série, que avalia os alunos que estão fora da faixa etária adequada para sua série.
Uma análise da Fundação Getúlio Vargas (FGV) baseada em dados do Censo Escolar 2023 mostra que o Ceará hoje tem a menor taxa média dessa distorção no Nordeste e também já está em melhor situação que a média nacional.
Em Pires Ferreira, essa taxa é perto de zero. Ou seja, quase toda criança está na série em que deveria estar.
A rede municipal de ensino de Pires Ferreira é pequena. São 1.966 alunos e 17 escolas, incluindo a educação de jovens e adultos (EJA).
Mesmo sendo uma cidade espalhada, com 70% da população vivendo em distritos rurais, as crianças não precisam percorrer distâncias muito longas para chegar aos colégios.
Isso também quer dizer que as comunidades escolares têm uma relação de proximidade (física e emocional) com as famílias.
Na escola do pequeno povoado de Marruás dos Rosas, muitos dos professores são nascidos e criados ali, assim como a própria coordenadora.
Mãe de Lorena, uma das alunas, a dona de casa Antônia Solange Oliveira acredita que esse é um dos diferenciais dali.
"Como conhecem, eles estão sempre atentos às crianças. A gente vê que as professoras correm atrás dos melhores, junto com as famílias", diz.
Lorena, que, aos 10 anos, sonha em ser jogadora de futebol, guarda e mostra com orgulho dezenas de medalhas que ganha em competições locais e nacionais.
Participar dessas olimpíadas de conhecimento é um incentivo constante na cidade — nas casas, é comum encontrar as medalhas penduradas na sala.
Em Pires Ferreira, as escolas também fazem uma avaliação bimestral para saber se os alunos estão aprendendo o conteúdo.
Caso o aprendizado não seja o ideal, os estudantes passam a ter aulas de reforço —ou seja, se estudam de manhã, à tarde ficam com outro professor, em turmas pequenas, para aulas extras. Se necessário, esses alunos também têm aulas nas férias.
Nas salas de aula, quadros colocam alunos em rankings de acordo com resultados.
Certamente, esse foco em resultado e exercícios tem dado a Pires Ferreira sua boa colocação — já que o Ideb leva em conta resultados de provas de português e matemática e a taxa de aprovação escolar.
Mas alguns educadores do Ceará têm se tornado vozes dissonantes desta política de metas e avaliações.
A pedagoga e pesquisadora Karlane Holanda dedicou anos de pesquisa conversando com alunos em escolas por todo o Estado para entender como as crianças entendem o que ela chama de "circuito de pressão pelos resultados".
Em um dos experimentos para o doutorado na Universidade Federal do Ceará (UFC), ela analisou um momento de entrega de medalhas para o "aluno nota 10" em uma sala de aula.
"A gente queria ver como as outras crianças se sentiam. Vimos situação de choro, agressividade, crianças batendo a porta ou esmurrando a parede em casa com raiva", diz Holanda, que hoje forma professores no Instituto Federal do Ceará (IFCE) em Paracuru, no litoral do Estado.
"O sistema aqui no Estado tem fortalecido essa ideia de ranqueamento. A avaliação em provas está balizando o que os professores estão ensinando. Isso deveria ser apenas um instrumento, não um fim em si mesmo."
As famílias com quem a BBC News Brasil conversou disseram que não se incomodam com o foco em provas e competições da educação em Pires Ferreira.
A professora Milena Costa diz que a ideia não é colocar um aluno contra o outro.
"A gente conversa com os alunos em dificuldade. Não é só reconhecer os melhores resultados, a gente também entrega medalhas ao destaque do mês, que é um reconhecimento ao aluno que mostrou uma evolução, mesmo pequena, em relação à avaliação anterior."
Para a prefeita reeleita de Pires Ferreira, Lívia Muniz (PSB), o Ceará tem se destacado nos últimos anos, porque o Estado conseguiu fazer com que os municípios se engajassem em sua política educacional.
"Os prefeitos se conversam para trocar boas experiências", diz a prefeita, destacando conexões com cidades vizinhas que também têm apresentado bons indicadores, como é o caso de Sobral.
"Tenho certeza de que novas administrações virão e que isso vai continuar", completa.
Mas, além dos índices educacionais, o Ceará e seus municípios terão mudanças na realidade socioeconômico?
Victor Hugo de Oliveira, do Ipece, acredita que a resposta mais clara surgirá nos próximos anos, quando alunos que começaram a ser alvo das intervenções na educação estarão chegando ao mercado de trabalho.
O analista espera ver os dados de emprego e renda dessa geração, mas já acredita que verá resultados.
"O grande resultado de uma política educacional é dar oportunidade melhor para esses jovens, seja em Pires Ferreira ou em outro local. Esse é o legado que a educação vai deixar", diz Oliveira.
A prefeita Lívia Muniz diz que espera que os jovens retornem: "Não temos hoje grandes investimentos na cidade, mas a gente acredita que essa melhoria vai vir, porque tendo uma melhor educação, a gente vai ter melhores empregos e pessoas investindo aqui".
O economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper e da Universidade de São Paulo, diz que alunos de cidades como Pires Ferreira, com bons índices e pouca repetência, tendem a alcançar melhores vagas no futuro.
Ele fez um estudo que mostra que esses jovens "vão trabalhar mais no setor formal da economia e entrar mais em faculdades".
Mas Menezes Filho avalia que, se a cidade não tiver condições adequadas, pode não conseguir segurar essa força de trabalho jovem.
"Mas tudo bem, não vai resolver o problema da cidade, mas o país como um todo está ganhando com pessoas mais bem formadas, né?"
Para a professora Milena Costa, não importa qual será a escolha de seus alunos, hoje no sexto ano do ensino fundamental. "Meu sonho é que eles continuem sonhando", diz.
"Pode ser que eles virem meus colegas de profissão, assim como eu virei das minhas professoras."
Em Pires Ferreira, ser professor também é sonho de crianças como Nara Ellen, de 12 anos, moradora do distrito de Otavilândia.
"Sinto que professor é uma pessoa muito importante na nossa vida. Então, eu quero fazer pedagogia, ser uma professora e ser importante na vida de muitas crianças", diz.
Fonte: correiobraziliense
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