Desde o início do ano, um grupo de dez pessoas de Amparo (SP) se planejou para viajar para Santiago do Chile e ver a neve, como fazem milhares de brasileiros a cada ano.
Mas eles sabiam que talvez não encontrassem a protagonista do passeio em sua melhor forma. Por meses, o grupo acompanhou estatísticas do clima para tentar prever se conseguiriam aproveitar a neve — incluindo duas crianças, que veriam esse tipo de paisagem pela primeira vez.
"Eu e meu pai viemos para cá em 2017 e tinha bem menos neve. Várias atrações estavam fechadas", lembra o empresário Eduardo Gerbi, 39 anos, falando com a BBC em Farellones, uma espécie de parque na neve que tem atividades como tirolesas e tubing (atividade em que se desliza em cima de uma boia na neve).
O ano de 2024 foi diferente: a neve caiu como há muitos anos não se via nas estações de esqui na região de Santiago, levando turistas e administradores das atrações a comemorarem.
Mas mesmo em um ano próspero em termos de neve, por via das dúvidas, as estações de esqui mantiveram ativos equipamentos que têm cada vez mais habitado o cenário das atrações: os canhões de neve artificial.
Em Farellones, há 15 equipamentos desses. Na estação El Colorado, pertencente à mesma empresa e a cerca de 20 km dali, há 27 aparelhos.
Essas máquinas começaram a ser adotadas nesses locais em 1998.
"Esse ano foi muito bom para a gente, estamos muito felizes", comemora Bernardo Jeneral Aguilera, chefe de operações da Andacor.
"Mas continuamos produzindo [neve artificial] para garantir a temporada. Imagina se não fabricamos agora... Ainda temos quase dois meses de temporada", disse Aguilera, falando com a BBC em julho.
Ele conta que, de 2017 a 2023, houve uma sequência de anos ruins em quantidade de neve.
Estudos mostram que o acúmulo de neve na região central do Chile, onde fica a capital, tem caído — e a perspectiva é que a situação piore nos próximos anos, segundo especialistas.
Nos anos ruins, a neve não desaparece totalmente dali, mas fica escassa. Os canhões de neve artificial dão uma força, mas, mesmo assim, às vezes é preciso fechar algumas atividades ou até a própria estação.
A tecnologia, pelo menos atualmente, não é capaz de cobrir amplas áreas como a neve natural.
Em Farellones, a temporada deste ano durou 114 dias, contra 53 no ano passado, quando a atração passou mais dias fechada. Em El Colorado, foram 118 dias contra 101.
Em outra estação na região muito procurada por brasileiros, Valle Nevado, foram 143 dias este ano e apenas 100 no ano passado.
Segundo Aguilera, os canhões começam a ser acionados em maio, entre 20h-22h até 8h da manhã do dia seguinte.
Em situações normais, a neve natural pode começar a cair na região entre o fim de maio e início de junho, estendendo-se até o fim de setembro ou início de outubro.
Mesmo na estação Valle Nevado, a mais alta na região de Santiago, recorre-se à neve artificial.
A mais de 3000m de altitude, a atração tem 33 canhões de neve artificial e usa esse tipo de equipamento há dez anos.
"Independente da situação atual, o Valle Nevado Ski Resort se preocupa sim com as variações climáticas e busca estar sempre preparado para receber esquiadores, portanto, investe na fabricação de neve artificial há alguns anos, mais para manter a neve natural acumulada e prolongar a melhor experiência", disse por e-mail Ricardo Margulis, gerente geral do Valle Nevado.
Essas máquinas exigem basicamente água, que costuma ser acumulada em reservatórios durante o verão e transportada pela rede hidráulica, além de conexão com a rede elétrica e a internet — para acessar o sistema de controle dos aparelhos.
A fabricação exige condições específicas de temperatura ambiente e umidade.
De acordo com a consultoria Fact.MR, a produção de neve artificial é um mercado em crescimento no mundo. Seu valor global está estimado em US$ 129,6 milhões em 2024 e pode chegar a US$ 227,8 milhões até 2034.
A taxa de crescimento anual composta prevista até lá é de 5,8%.
"Padrões climáticos imprevisíveis e redução da queda de neve natural em certas regiões aumentaram a dependência da neve artificial, impulsionando ainda mais o mercado", analisa a consultoria.
Este é um mercado "altamente competitivo", com diversas empresas batalhando para oferecer "soluções avançadas, sustentáveis e eficientes na produção de neve".
Entretanto, a consultoria aponta para os obstáculos desse mercado, como o alto custo de compra e instalação dos canhões, sobretudo para negócios menores. Além disso, há um grande custo energético no uso.
Em julho, foi a primeira vez que as amigas Anelizi, Marcelly e Mariana saíram do Brasil. A viagem para o Chile era um sonho antigo delas, que moram no Rio de Janeiro (RJ) e desejavam conhecer a neve.
Elas brincam que a programação delas na capital chilena e arredores seria o típico pacote dos brasileiros por ali: ir a centros de neve, vinícolas e passear por Santiago.
As amigas desabafam que estavam preocupadas se iriam conseguir aproveitar a neve, já que sabiam que 2023 teve pouca neve — mas estavam aliviadas com a situação desse ano.
"A gente ficou vendo qual mês seria o melhor pra gente arriscar e vir. Tudo para estar pegando neve", conta a fisioterapeuta Mariana Zinezi, de 30 anos.
Antes de conversar com a reportagem, as amigas não tinham reparado nos canhões de neve artificial e se mostraram surpresas com a tecnologia.
"A gente entende que é só uma temporada que eles têm para ter [receber] todo o dinheiro e tudo mais, então é importante para a economia deles", diz a assistente de sala de aula Marcelly Brandão, de 30 anos.
Julho desse ano teve o maior número de turistas brasileiros chegando ao Chile já registrado, de acordo com a Subsecretaria de Turismo do governo chileno. Só naquele mês, 142.782 brasileiros chegaram ao Chile.
E o número de turistas brasileiros que foram ao Chile de janeiro a agosto desse ano já é 15,6% maior do que em todo o ano de 2023.
Se forem comparados os períodos de janeiro a agosto de ambos os anos, o número de brasileiros já é 83% maior em 2024.
O principal local de chegada é justamente Santiago, no aeroporto internacional, onde chegaram cerca de 88% dos turistas brasileiros neste ano.
Entretanto, historicamente — inclusive em 2023 —, o principal país de origem de quem visita o Chile é a Argentina, seguida do Brasil. Ainda não há dados disponíveis para 2024.
Um relatório de 2021 do Banco Mundial analisou quais podem ser os impactos das mudanças climáticas no Chile.
O estudo estimou que, até meados desse século, a temperatura média anual no país deve aumentar entre 1,4°C–1,7°C. Até o fim do século, a estimativa é de 3°C–3,5°C de aumento.
E justamente a região central do país, onde fica Santiago, deve ser mais afetada pelo aumento das temperaturas e pela redução da quantidade de chuva.
O relatório prevê que, no país, o número de dias com temperatura mínima inferior a 0ºC diminua entre 12-42 dias até a década de 2050, e entre 37-69 até a década de 2090.
As mudanças devem ser mais perceptíveis nos meses de inverno, principalmente entre julho e agosto. Além disso, o verão deve começar mais cedo e durar mais, enquanto a precipitação diminuirá, prevê o relatório.
O climatologista Raul Cordero, professor da Universidade de Santiago do Chile (USACH), tem estudado na teoria e observado na prática a diminuição da neve na região da capital chilena — assim como a diminuição nas chuvas, do nível dos rios locais e o aumento das temperaturas.
Santiago é rodeada pela Cordilheira dos Andes, a cadeia montanhosa que percorre vários países da América do Sul. As principais estações de esqui visitadas aos montes pelos brasileiros também ficam na cordilheira.
Cordero e colegas devem publicar nos próximos meses um estudo que reforça dados publicados em 2019 em artigo liderado por ele na revista científica Scientific Reports.
Na época, a equipe calculou que a Cordilheira dos Andes perdeu em média 10% de sua cobertura de neve a cada década entre 1986 e 2018. Nesse caso, foi analisada a neve apenas no verão (neve perene).
No novo estudo, todo o ano foi considerado, e o período de análise é menor, de 2001 a 2023.
"Infelizmente, os novos dados confirmam o que já imaginávamos: que a neve nos Andes, não apenas na zona central do Chile mas praticamente em toda a cordilheira, está desaparecendo em um ritmo extraordinário, de ao menos 10% por década", disse Cordeiro à BBC News Brasil.
"Mas, na zona central do Chile, a diminuição é mais acelerada do que no resto do continente."
Cordero, que vive em Santiago desde 2000, diz que a diminuição da neve é visível na paisagem da cordilheira que se observa da cidade.
"Nós [da universidade] temos uma estação para monitorar a neve, a cerca de 2.700 metros acima do nível do mar. Este ano, para ir à nossa estação, precisamos usar crampons [sola de metal própria para neve]. Mas nos outros anos, não era necessário, porque havia tão, tão pouca neve que não precisávamos de equipamento para caminhar", relata o cientista.
Para ele, a bonança de 2024 é uma exceção, atribuída ao El Niño — que traz mais chuvas na região chilena e, logo, mais neve.
"Tivemos sorte de ter um ano de um jeito que antigamente era considerado normal."
Perguntado sobre o impacto ambiental dos canhões de neve artificial, ele responde que "não são tão ruins" da forma que vêm sendo usados nos arredores de Santiago — com uso de fontes de energia renovável e água acumulada em reservatórios próximos.
Por ser tão importante para o turismo, Cordero considera que, eventualmente, estações de esqui precisarão se realocar em busca de neve.
"Eles têm que pensar que temporadas como a de 2024 vão ser cada vez mais escassas. O mais provável é que precisem colocar as pistas de esqui em maiores altitudes", afirma.
Fonte: correiobraziliense
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