"Imagine um relógio de pulso que não perderia um segundo sequer, mesmo que você o deixasse funcionando por bilhões de anos."
"Embora ainda não tenhamos chegado lá, esta pesquisa nos deixa mais perto deste nível de precisão."
O físico Jun Ye é pesquisador do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos (NIST, na sigla em inglês), e professor da Universidade do Colorado em Boulder.
E o relógio a que ele se refere é um relógio nuclear.
Em um estudo recente que foi capa da revista científica Nature, Ye e uma equipe internacional de cientistas descrevem o primeiro protótipo deste tipo de relógio — e mostram que todos os componentes de que necessita já são uma realidade.
Atualmente, os relógios atômicos são o padrão utilizado a nível mundial para medir o tempo.
Os relógios nucleares não só seriam ainda mais precisos do que os relógios atômicos, como também ajudariam os cientistas a explorar grandes mistérios do Universo, como a matéria escura.
Foram necessárias décadas para chegar a esse ponto no desenvolvimento de um relógio nuclear.
Mas por que o avanço descrito na revista Nature é tão importante? E qual é a diferença entre um relógio atômico e um relógio nuclear?
Os relógios atômicos registram sinais de elétrons que mudam seu estado de energia, o que é conhecido como "salto quântico".
"Qualquer relógio tem dois componentes: algo que faz tic-tac, como um pêndulo, e algo que conta essas oscilações", explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, a cientista colombiana Ana María Rey, física atômica teórica do NIST e professora da Universidade do Colorado em Boulder, especialista em relógios atômicos.
"Em um relógio de pêndulo normal, você vê que o relógio tem o pêndulo e um mecanismo que move o pêndulo, e informa quantas vezes ele oscilou."
No caso do relógio atômico, acrescenta Rey, o que oscila (o equivalente ao pêndulo) é uma onda eletromagnética de luz que, normalmente, nos relógios atômicos ópticos é um laser, e o que conta as oscilações são os elétrons dos átomos.
"As oscilações de um relógio atômico podem ser tão rápidas que nem sequer os dispositivos eletrônicos normais conseguem medi-las."
"Mas os elétrons, por outro lado, por absorverem energia apenas em determinadas frequências, são o que nos permite determinar quando a frequência do laser é exatamente a frequência do elétron, porque quando isso acontece, o elétron faz uma transição do nível de base para o nível de excitação."
"E como o laser tem um determinado número de oscilações em um determinado período de tempo, isso nos permite determinar uma maneira universal, uma medida de tempo."
É graças aos relógios atômicos que o tempo agora é sincronizado em todo o mundo com precisão de até pelo menos o décimo sexto dígito em computadores, telefones celulares e muitas outras tecnologias, como na área de pesquisa espacial.
"Em geral, todas as medidas que temos dependem da medida do tempo. Por exemplo, a medida da distância se baseia no fato que sabemos a velocidade da luz."
Os relógios atômicos estão "em tudo", diz Rey.
"Nos satélites que controlam o GPS, por exemplo. Quando olhamos para o nosso GPS, e pedimos instruções sobre como ir de um lugar para outro, dependemos dos relógios atômicos que estão nesses satélites."
No caso do relógio nuclear, não são usados os sinais dos elétrons — mas, sim, do núcleo de um átomo.
"Como já dissemos, o relógio atômico excita os elétrons do átomo. No entanto, o átomo não tem apenas elétrons, ele também tem o núcleo, que é composto de prótons e nêutrons, e esses estados do núcleo também podem se excitar", explica Rey.
"O problema é que essas excitações exigem uma energia muito alta, mas foi descoberta uma determinada classe de átomos, o tório, em que a energia para excitação é muito menor do que as energias padrão encontradas no núcleo.
O núcleo só absorve energia de um laser em uma faixa de frequência muito pequena. E encontrar a frequência exata desse laser ultrapreciso para gerar a transição no núcleo é um esforço de décadas.
Rey ressalta que, embora essa transição tenha sido prevista na década de 1970, ela não foi encontrada porque era como "encontrar uma agulha em um palheiro".
O que os cientistas do estudo publicado na revista Nature conseguiram agora foi usar um laser ultravioleta especialmente desenvolvido para medir com precisão a frequência de um salto de energia em núcleos de tório incorporados em um cristal sólido.
"O relógio nuclear usa um salto quântico dentro do núcleo atômico, que é, inclusive, um fator 1.000 vezes menor do que o próprio átomo. Nosso trabalho mostrou pela primeira vez que isso é possível. Neste caso, é um nêutron que salta para um estado de energia diferente", explica o cientista alemão Thorsten Schumm, pesquisador da Universidade de Tecnologia de Viena, um dos autores do estudo, à BBC News Mundo.
Schumm acredita que o relógio nuclear vai ser uma realidade num futuro próximo.
"Acho que a partir de agora as coisas vão avançar muito rápido. Em um ano, já vimos um progresso incrível, e posso prometer que mais coisas maravilhosas estão por vir."
"O que é mais necessário é um desenvolvimento na parte do laser... Eu diria que não vai levar mais de cinco anos."
"Com este primeiro protótipo, demonstramos que o tório pode ser usado como cronômetro para medições de altíssima precisão. Só resta o trabalho de desenvolvimento técnico, sem grandes obstáculos a serem superados."
Embora o relógio nuclear seja ainda mais preciso do que o relógio atômico, Schumm explica que "a vantagem do relógio nuclear não é tanto seu melhor desempenho, mas sua maior estabilidade".
"Como o núcleo é tão pequeno, e as forças nucleares envolvidas são enormes, as perturbações externas, como a temperatura ou os campos magnéticos, não o afetam realmente. Por isso, é um relógio muito mais robusto."
"Você pode até mesmo incorporar um número muito grande de núcleos em algum material portátil simples, como um cristal, sem prejudicar o desempenho."
Além de suas aplicações tecnológicas, algo que deixa os cientistas especialmente entusiasmados é que os relógios nucleares vão abrir uma nova janela para o estudo do Universo.
"O relógio nuclear é insensível a forças externas, mas é muito sensível a forças internas que atuam dentro do núcleo. São forças eletromagnéticas, mas também forças nucleares, que mantêm o núcleo unido. Estas últimas, especialmente, são muito difíceis de pesquisar — por isso, o relógio nuclear também vai funcionar como um sensor de algumas das forças fundamentais da natureza", diz Schumm.
Mas que questões vão poder ser exploradas com um relógio nuclear?
"Há muitos aspectos do Universo que ainda não entendemos", diz Rey.
"Por exemplo, sabemos que mais de 80% dos componentes do Universo não são matéria normal — mas, sim, matéria escura, que não entendemos. E é possível que, ao operar um relógio nuclear que seja bastante sensível a muitos efeitos aos quais os relógios atômicos normais não são sensíveis, possamos ter uma chave para entender qual é a origem dessa matéria escura."
Os relógios nucleares também vão poder ser comparados com os relógios atômicos — e isso vai permitir estudar se as constantes da natureza que são consideradas universais, como a velocidade da luz, são realmente invariáveis no tempo e no espaço.
"Uma série de questões que não sabemos por enquanto", acrescenta Rey.
"Por isso, é uma janela para pesquisas futuras que vão nos permitir descobrir mais sobre o Universo. Sempre que isso acontece, temos desenvolvimentos tecnológicos melhores."
Schumm descreveu à BBC News Mundo como foi a sensação ao chegar à frequência precisa para alterar o estado de um núcleo de tório.
"É simplesmente incrível! A maior parte do nosso tempo é gasta construindo coisas e consertando componentes que estão defeituosos, então, há pouco (ou nenhum) progresso, e pensamos muito em como seria fantástico se finalmente funcionasse. E realmente funcionou! Poucos pesquisadores têm o privilégio e a sorte de vivenciar esse momento , e agradeço à minha equipe e colaboradores por terem persistido por tanto tempo."
"Agora podemos pegar muitas das ferramentas poderosas que foram desenvolvidas na física atômica e na óptica quântica e transferi-las para a física nuclear — eu diria que há perguntas em aberto suficientes para toda uma geração de cientistas!", acrescentou o cientista da Universidade de Tecnologia de Viena.
Além disso, tanto o relógio atômico quanto o nuclear mostram como as pesquisas em física teórica podem acabar impactando a vida cotidiana de bilhões de pessoas.
"Em geral, a física teórica cria os modelos que permitem os experimentos para tentar entender como nosso Universo se comporta", diz Ana María Rey.
"Todos os computadores, por exemplo, são baseados em transistores. E os transistores existem porque entendemos a mecânica quântica. Entendemos, por exemplo, como os elétrons se movem em um metal, tudo isso requer um entendimento da mecânica quântica."
"A física teórica é aquela que oferece uma maneira de interpretar por que esse comportamento acontece, e faz previsões de novas maneiras como a natureza pode se comportar. E é essa interação entre as previsões feitas pela física teórica e os experimentos que leva a descobertas que promovem o avanço da tecnologia no dia a dia, nas áreas de eletrônica, comunicações e transporte. Tudo isso se deve indiretamente à nossa compreensão da mecânica quântica."
"E os relógios nucleares podem oferecer outra maneira de entender a mecânica quântica que não temos no momento."
Em entrevista à Optica, sociedade americana que promove o avanço deste campo científico, Ana María Rey lembrou que descobriu sua vocação após um momento eureca durante a sua primeira aula de física.
"Todos os números e conceitos na minha mente ganharam vida. Senti a beleza da física; ela rege nosso Universo, desde os movimentos dos elétrons dentro de um átomo até o comportamento dos buracos negros."
"Era um quebra-cabeça que poderia nos contar tudo sobre o mundo, e fiquei fascinada por poder resolvê-lo."
Será que Rey ainda sente a beleza da sua área de estudo em seu trabalho atual com os relógios?
"Claro, todos os dias", diz ela à BBC News Mundo.
"Chego ao trabalho com a empolgação de poder tentar descobrir aspectos da física que possam nos dizer em uma equação como o Universo se comporta. Para mim, é algo fascinante. Como podemos descrever matematicamente o que acontecerá se aplicarmos essa coisa? Se iluminarmos um átomo com uma determinada frequência de luz, como ele vai se comportar, o que vai acontecer?"
“Ser capaz de prever com um modelo matemático o que vai acontecer, é como mágica, e foi isso que me pareceu fantástico. Se eu puder com a minha teoria dizer ao experimentador, aplique isso, meça aquilo e você vai encontrar isso, é a melhor coisa que pode acontecer."
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.