O retorno do republicano Donald Trump ao salão oval da Casa Branca - de onde tradicionalmente despacham os presidentes americanos - poderá ter efeitos políticos de ordens práticas e filosóficas a quase sete mil quilômetros de Washington, a capital dos Estados Unidos.
Ao menos é o que acreditam expoentes da direita bolsonarista radicados atualmente no país, como o ex-comentarista da Jovem Pan, Paulo Figueiredo, e o ex-chanceler de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo. Ambos conversaram com a BBC News Brasil poucos dias antes das eleições americanas, agendadas para 5/11, e indefinidas entre Trump e sua adversária, a democrata e atual vice-presidente Kamala Harris, segundo as pesquisas de intenção de votos.
Em diferentes graus, Araújo e Figueiredo estão convencidos de que, no poder, Trump exerceria pressão - direta ou indiretamente - no Brasil de modo a colocar em evidência o ex-presidente Jair Bolsonaro, atualmente inelegível até o fim de 2030, alterar o modo como o país combate fake news em mídias sociais, especialmente à luz do caso do bloqueio pelo Supremo Tribunal Federal do X (ex-Twitter) e impulsionar um retorno do foco do bolsonarismo a uma agenda mais programática de direita radical, com a chance de retomar e aprofundar intercâmbios com outros grupos políticos da mesma vertente internacionalmente, impulsionados pela força política e econômica do trumpismo instalado na Casa Branca.
A avaliação, no entanto, não é exclusividade de simpatizantes do ex-presidente Bolsonaro. “Se o Trump vencer, (...) muda (o cenário doméstico brasileiro). Se o Trump perder, desinfla muito o (líder argentino Javier) Milei, a extrema direita mundial. Se ele ganha, sempre dá um incentivo (ao bolsonarismo)”, disse o líder petista José Dirceu em entrevista à Mônica Bergamo, do jornal Folha de São Paulo, no fim de setembro passado.
Já o ex-subsecretário do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental, Thomas Shannon, que serviu também como embaixador dos EUA no Brasil, vê a possível volta de Trump ao poder como o provável início de um novo capítulo da recente história espelhada que Brasil e EUA têm escrito.
Nos últimos dez anos, os dois países viveram o desgate dos políticos tradicionais, a ascensão ao poder de modelos populistas de direita, a derrota nas urnas dos representantes desse modelo (Trump e Bolsonaro), as contestações ao modelo democrático que culminaram em ataques físicos às instituições pelos apoiadores desses líderes, como a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e a depredação da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
“Se o Trump for reeleito agora, isso deve ajudar Bolsonaro, porque mostra que é possível perder e ainda assim voltar ao poder quatro anos depois”, disse Shannon à BBC News Brasil.
Tanto Figueiredo quanto Araújo se juntam, com diferente intensidade, a um esforço de brasileiros na campanha online pró-Trump. Fazem também a interface entre representantes da direita dos dois países e têm consolidado sua influência com a diáspora brasileira nos EUA.
Araújo soma quase 900 mil seguidores em sua conta do X e, atualmente licenciado do Itamaraty, vende cursos online de formação política à direita, que ele admite ter criado sob “inspiração” do guru Olavo de Carvalho, morto há dois anos.
Já Figueiredo, cuja conta do X está atualmente bloqueada no Brasil por determinação do STF, reúne 1,3 milhão de seguidores ali. Nos EUA, ele consegue operar seu perfil normalmente, sem restrições legais. Figueiredo é alvo de investigação da Polícia Federal, que o acusa de ter participação na tentativa de golpe de Estado arquitetada por expoentes do governo de Bolsonaro depois da derrota eleitoral de 2022.
Segundo o relatório do Ministro Alexandre de Moraes, que determinou medidas contra Figueiredo (como o cancelamento de seu passaporte brasileiro) no começo deste ano, ele fazia parte de uma ação coordenada para expor e pressionar comandantes militares que não concordaram em aderir aos planos golpistas. À época, ele mantinha um influente programa na emissora Jovem Pan. Figueiredo nega que tenha cometido crime, diz que realizou trabalho meramente jornalístico junto às suas fontes das Forças Armadas, que jamais tomou parte em conversas cujo objetivo fosse declaradamente um golpe de Estado e que tem sido vítima de censura prévia, já que seus perfis em redes sociais estão bloqueados.
No conteúdo produzido por Figueiredo e Araújo, o Brasil é atualmente descrito como um país “com déficit democrático”, sob o jugo de ordens que ambos veem como abusivas do STF contra a liberdade de expressão. Quando o X foi bloqueado no Brasil, depois que o bilionário Elon Musk, dono da plataforma, optou por descumprir decisões anteriores do STF, esta rede de opinião bolsonarista nos EUA passou a impulsionar uma narrativa de que, se Kamala Harris vencesse o pleito de 2024, o X viria a ser bloqueado nos EUA também. A candidata democrata jamais comentou o assunto. “Não acho que a Kamala esteja ouvindo o Alexandre (de Moraes), mas ambos tem essa visão, que foi fomentada em boa parte por profissionais desse ‘Deep State’, nas universidades, nos veículos de mídia, uma visão de que esse movimento Nacional-Populista (de Trump e Bolsonaro) precisa ser freado, e isso é feito através da censura”, argumenta Figueiredo, usando o termo em inglês adotado por Trump e por conspiracionistas de grupos como QAnon para descrever uma suposta burocracia financiada por multimilionários para impulsionar agendas de esquerda.
Em parte foi esse o argumento que Figueiredo apresentou a um grupo de congressistas americanos durante audiência no Capitólio em maio passado. Diante de nomes da direita brasileira, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o blogueiro Allan dos Santos, o ex-comentarista da Jovem Pan Rodrigo Constantino e o deputado federal cassado e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, Figueiredo ouviu da deputada democrata Sydney Kamlager-Dove, co-presidente da Comissão sobre Brasil, que aquela “audiência é uma tentativa de minar a democracia brasileira ao dar uma plataforma para os mesmos indivíduos que espalharam mentiras sobre as eleições" .
Há ecos dos argumentos de Figueiredo e seu grupo na manifestação de uma brasileira que parou seu carro diante da janela de drive through da lanchonete McDonalds na qual Trump servia batatas, em um ato de campanha recente. “Senhor presidente, por favor, não deixe os Estados Unidos virarem o Brasil”, disse ela.
Em suas redes, Figueiredo a endossou: “É sequer controverso que nós da diáspora brasileira não queiramos que os EUA se tornem um Brasil? É sequer controverso que a eleição da Kamala Harris empurraria a América nesta direção? Esta não é nem a primeira nem a última brasileira a dizer isso ao Trump, posso garantir”, escreveu o comentarista, sugerindo que ele mesmo já teria feito apelo semelhante ao republicano. Figueiredo afirmou à reportagem que mantém proximidade com Trump, Musk e integrantes da campanha democrata.
“O ex-presidente Donald Trump tem um enorme carinho pessoal pelo ex-presidente Bolsonaro, eu já testemunhei interlocução entre os dois, conheço pessoalmente razoavelmente bem Donald Trump, talvez não tão bem quanto conheço o presidente Bolsonaro, e vejo a forma afetuosa como eles lidam um com o outro. Há também uma relação de afeto grande da família do Trump com a família do Bolsonaro, especialmente com o Eduardo Bolsonaro, então há uma simpatia, há um carinho pessoal. Algumas conversas que eu testemunhei eu não posso reportar, mas posso dizer a impressão que eu tive de carinho e de preocupação com o Brasil”, afirmou Figueiredo quando questionado sobre como um governo Trump poderia alterar a situação da direita brasileira. Tanto Jair Bolsonaro quanto Eduardo Bolsonaro foram procurados para comentar, mas suas assessorias não responderam à reportagem da BBC News Brasil até a publicação desta reportagem.
Para ele, essa proximidade naturalmente transbordaria para ações de Trump na direção cara ao grupo de Bolsonaro. Ainda no argumento de Figueiredo, some-se ao afeto de Trump não apenas os interesses de Musk, atualmente o maior doador de campanha do republicano, que cerrou embates públicos com Moraes, como o histórico do assessor de Trump Jason Miller, interrogado por ordem de Moraes no aeroporto de Brasília, onde foi mantido por agentes da PF ao longo de quase 4 horas, no âmbito do inquérito das Fake News, em setembro de 2021.
À época, Miller, que era CEO de uma rede social usada majoritariamente pela direita, chamou os agentes da Polícia Federal de "Gestapo", a polícia secreta da Alemanha Nazista.
“Musk vai ter influência no governo Trump e o Brasil está no mapa mental do Musk, então eu acho que ele vai influenciar a percepção sobre Brasil num novo governo Trump”, concorda Ernesto Araújo. “ O grande tema do momento no mundo é a liberdade de expressão e o Musk vê o Brasil como uma das principais frentes de batalha no assunto, por tudo o que aconteceu com o X. Então é alguém que pode influenciar a administração do Trump em medidas que sejam, de certa forma, mais críticas da ausência de liberdade de expressão no Brasil, mais favoráveis a uma pressão”, diz Araújo.
Como ex-chanceler do Brasil, ele disse não querer “entrar tanto em especulação sobre essa coisa de sanções”. “Porque isso depende, há coisas que são da alçado do Executivo, alguma investigação do Departamento de Justiça, mas é preciso ver se essa mudança de entendimento ficará só na Casa Branca, porque nem tudo depende só do presidente”, explicou Araújo, que como chanceler empreendeu alinhamento total do Brasil com a gestão Trump, mas não conseguiu aprovar um acordo de livre comércio com os EUA, uma meta da gestão Bolsonaro, travada no Congresso americano.
O mesmo congressista republicano que levou Figueiredo para a audiência no Congresso americano, o deputado Chris Smith, introduziu em setembro um projeto de lei que tem feito brilhar os olhos dos bolsonaristas nos EUA. Batizado de No Censors on our Shores Act, ou algo como Ato sem censores em nossa área de jurisdição, o projeto prevê a cassação de vistos ou mesmo a deportação de “qualquer autoridade estrangeira envolvida em atos de censura” contra cidadãos americanos que, se estivessem nos EUA, violariam a primeira emenda da Constituição (que garante liberdade de expressão). Tanto Figueiredo como Ernesto admitem que o alvo da lei são os ministros do STF.
“O projeto já está pronto para ser votado agora depois das eleições, a gente vai trabalhar para que seja votado ainda por essa legislatura na Câmara (de maioria republicana) e na próxima legislatura pelo Senado (quando a expectativa é que a maioria seja republicana). Não só os ministros ficariam impedidos de entrar nos Estados Unidos, mas também os delegados da Polícia Federal, juízes auxiliares, outras figuras que certamente a gente tem trabalhado para identificar. E aí a gente vai depender da sanção presidencial, e eu sou muito mais otimista com uma sanção presidencial do Donald Trump”, diz Figueiredo, para quem Trump exerceria pressão sobre a base republicana em prol do projeto de lei. “É um otimismo informado”, acrescenta.
Um segundo projeto de lei, que prevê a proibição de que agências governamentais americanas financiem ações ou deem assistência com dinheiro público a entidades estrangeiras que "promovam censura" de entes americanos poderia seguir o mesmo caminho legislativo e foi igualmente criada pensando em punir o Brasil pelo caso com o X.
Já Ernesto Araújo se mostra menos seguro de um caminho legislativo tão certo para as medidas - embora as considere também as medidas mais duras disponíveis. E tenta também reduzir expectativas: “não é que o Trump vai invadir o Brasil, precisa ver a estratégia que eles terão pro país, que instrumentos táticos estarão disponíveis, mas eu não espero nada dramático.”
Ele aposta que Trump poderia exercer algum protecionismo econômico e constranger empresas brasileiras ao abrir investigações por corrupção via Departamento de Justiça, como aconteceu com a Lava-Jato. Ou mesmo focar em empresas chinesas atuando no Brasil. O republicano tem prometido distribuir tarifas a produtos importados pelos EUA, o que também poderia afetar o Brasil.
Tanto Araújo como Figueiredo são categóricos em dizer que Trump “não se envolveria na política interna do Brasil” quando perguntados sobre como o governo do republicano poderia influenciar a aprovação de um projeto de anistia ao ex-presidente Bolsonaro e a seus aliados, que tem sido discutido no Congresso brasileiro. Mas não descartam que Trump seja capaz de promover uma mudança de atmosfera que faça as autoridades brasileiras repensarem suas ações.
Em setembro, no auge da batalha judicial com o STF, Elon Musk tuitou: ''Espero que Lula goste de voo comercial. A menos que o governo brasileiro devolva os bens ilegalmente apreendidos do X e da SpaceX, buscaremos a apreensão recíproca dos ativos do governo também''.
Naquele momento, o governo americano de Biden tinha recém confiscado um avião do líder venezuelano Nicolás Maduro, que havia descumprido acordos eleitorais e reprimia a oposição. Para Figueiredo, a reação de Musk foi apenas uma “brincadeira de um cidadão”, e não a antecipação de ações que Trump poderia tomar. Apesar disso, Figueiredo ressalva:
“É plenamente possível (sanções) e eu acho até que este é o rumo natural caso o Brasil insista nas políticas que está insistindo, inclusive a prisão do presidente Bolsonaro que está sendo projetada. Acho que se o Brasil continuar violando os acordos internacionais do qual é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, se o Brasil continuar nessa flagrante violação (do direito à liberdade de expressão), a política externa americana, que eles são soberanos pra decidir, pode ser que leve a administração Trump ao ponto de, se necessário, aplicar sanções diretamente ao Brasil”, opina Figueiredo.
Araújo e, em menor grau, Figueiredo, expressaram certa expectativa de que o retorno de Trump ao poder pudesse levar Bolsonaro a retomar uma agenda mais ideológica e programática em direção à direita radical.
“Se o Trump vier com determinadas políticas que seriam semelhantes provavelmente às do mandato anterior, isso nos anima no Brasil, quem acredita nessas políticas de ideário conservador, até porque mostra que há viabilidade eleitoral nelas”, diz Araújo.
Para ele, “o Bolsonarismo se aproximou do Centrão, não o Centrão que se aproximou do Bolsonarismo, mas o exemplo de Trump, que volta ao poder sem ter se aliado a um Valdemar (da Costa Neto, presidente do PL), faz também ressurgir programas e discussões que estavam enterradas”.
Trump foi capaz de colonizar completamente o Partido Republicano, enquanto que Bolsonaro falhou em criar o seu Aliança Brasil e acabou abrigado na legenda de Valdemar. “Eu acho um erro”, diz Figueiredo.
“Nos EUA foi a liderança que absorveu o partido, no Brasil foi o contrário”, critica Araújo, que diz que a emergência de Pablo Marçal é exemplo da "demanda que existe por um líder populista de direita".
O ex-chanceler, que atualmente trabalha na assessoria internacional do partido de direita radical espanhol Vox, diz esperar que a chegada de Trump ao poder possa impulsionar o Foro de Madrid, uma espécie de internacional dos ideários conservadores e anticomunista criada em 2020.
Ele se entusiasma com as ideias de gestão que Musk possa trazer para o grupo, imagina que os países possam replicar as estratégias de rede do bilionário e demonstra a expectativa de que a chegada de Trump ao poder signifique injeção de dólares a esse intercâmbio internacional, que também contaria com a participação dos húngaros ligados ao governo de Viktor Orban, italianos do grupo de Georgia Meloni, poloneses ligados ao presidente do país Andrzej Dudah, além de latinos dos movimentos de Javier Milei, na Argentina, e José Antônio Kast, no Chile.
Fonte: correiobraziliense
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