Enquanto grupos rivais de cardeais manobram para eleger o próximo papa, o cardeal americano Bellini (interpretado por Stanley Tucci) rejeita a acusação de que ele teria roubado documentos para difamar um adversário. E sua decisão não se baseia apenas em questões morais.
"Eu seria o Richard Nixon dos papas", afirma ele.
A cena resume o inteligente roteiro, a perspicácia e os ricos personagens do filme Conclave, que nos leva aos bastidores do ritualizado processo secreto promovido no Vaticano após a morte de um papa.
Conclave é um thriller político contemporâneo e envolvente. Edward Berger – o mesmo diretor de Nada de Novo no Front (2022), que ganhou o Oscar de melhor filme internacional – dirige a obra com grande precisão e fidelidade aos conclaves reais. Ele captura um conflito essencial, que surge quando o antigo ritual chega ao século 21 dominado pela cobertura da imprensa.
Esta relação entre o antigo e o moderno inspirou o best-seller de Robert Harris com o mesmo nome, publicado em 2016. O romance serviu de base para o filme.
Harris contou à BBC que a ideia surgiu em 2013. Ele estava terminando os romances da sua Trilogia de Cícero, que se passa na Roma Antiga, enquanto acompanhava as notícias sobre a eleição do papa Francisco.
"Pouco antes que o [novo] papa se apresentasse na sacada, as janelas dos dois lados eram ocupadas pelos rostos dos cardeais eleitores que vieram observá-lo", conta Harris.
"Olhei para os seus rostos, todos homens idosos, astutos, alguns muito bondosos e santos, outros com aparência muito cínica. Então, pensei: 'meu Deus, estou olhando para o Senado romano'."
O escritor percebeu que "um Senado governante totalmente masculino havia sobrevivido e aqueles homens idosos que conduziam tudo eram uma ligação direta com a República de Roma".
Harris conta que, quando começou a pesquisar os conclaves, "simplesmente pensei como aquilo é absolutamente fascinante – a política em forma bruta".
Ralph Fiennes interpreta o personagem central do filme. Sua atuação é cotada para o Oscar.
Fiennes traz sincera elevação espiritual à obra, como o ponderado cardeal inglês Lawrence. Ele é encarregado de dirigir o conclave, enquanto sua confiança na própria vocação se desgasta.
A história começa com a morte do papa. Os produtores do filme conduziram extensas pesquisas para retratar os detalhes autênticos de um conclave.
Os cardeais chegam de todas as partes do mundo e se hospedam em quartos austeros na Casa Santa Marta, uma construção em forma de dormitório.
Quando o conclave tem início, eles são confinados, entregando seus telefones celulares e outros aparelhos. Eles não têm acesso à internet, nem recebem notícias do mundo exterior, e juram manter sigilo.
Os cardeais votam cuidadosamente na Capela Sistina, escrevendo o nome do futuro papa em um pedaço de papel, que é colocado em uma bandeja de prata e depositado em uma urna. A votação continua, dia após dia, até que um papa seja eleito.
Tudo é real, exceto pelo fato de que a Casa Santa Marta e a Capela Sistina do filme são réplicas construídas nos Estúdios Cinecittà, em Roma, na Itália.
Os ornamentados adornos, detalhes precisos e os chapéus vermelhos brilhantes dos cardeais não impedem as lutas pelo poder político, igualmente realistas.
Berger conta à BBC que as compreensíveis ambições humanas dos cardeais são similares às de qualquer outra instituição.
"O CEO [diretor-executivo] morreu e as pessoas começam a brigar, elas irão sacar suas armas para conseguir o cargo, seja em Washington DC ou, neste caso, na Igreja", afirma ele.
"Nós pensamos nisso como um antigo ritual espiritual e naqueles homens, como pessoas sagradas. Nós os colocamos neste pedestal e, quando você olha mais de perto, eles têm telefones celulares, eles fumam, eles têm os mesmos problemas, vícios e segredos de todos nós."
"Para mim, foi importante trazê-los para a modernidade", explica o diretor.
Harris afirma que "quis refletir as verdadeiras divisões dentro da Igreja, que existem da mesma forma que na política secular".
Como na política atual, os adversários da ficção se dividem entre liberais e conservadores.
Bellini é um dos principais candidatos e defende padrões liberais . Ele é aberto em relação a questões como o papel das mulheres na Igreja. O outro líder é o cardeal italiano Tedesco (Sergio Castellitto), um conservador que deseja retomar a missa rezada em latim.
Outros concorrentes incluem o enigmático cardeal canadense Tremblay (John Lithgow), Adeyemi (Lucian Msamati) – que espera se tornar o primeiro papa africano – e o pouco conhecido Benítez (Carlos Diehz), secretamente nomeado cardeal de Cabul (um cargo que, na verdade, não existe).
Berger aumenta o suspense enquanto surgem os esquemas, o vazamento de informações e a difamação. Seu estilo tenso relembra thrillers políticos como Todos os Homens do Presidente (1976).
Fora da calma da Capela Sistina, Bellini afirma que não quer o cargo, mesmo quando seus apoiadores pedem votos para ele, tentando bloquear Tedesco. E esta reviravolta no roteiro está longe de ser exagerada.
O jornalista Dan Wakin cobriu para o jornal The New York Times os conclaves que elegeram o papa Bento 16 (1927-2022) em 2005 e o atual papa Francisco, em 2013.
"Um cardeal que quisesse se tornar papa não faria alarde; ele faria exatamente o oposto", conta ele à BBC. "Este tipo de exposição das ambições é determinante."
Em uma entrevista publicada em forma de livro no último mês de abril, o próprio papa Francisco revelou que, no conclave de 2005, sua candidatura recebeu apoio sem que ele soubesse, como tentativa de bloquear a eleição do cardeal conservador Joseph Ratzinger, que se tornaria o papa Bento 16.
E, mesmo quando os cardeais são confinados, a imprensa deixa sua sombra.
No filme, quando um adversário expõe o passado de um cardeal dentro do conclave, Lawrence diz a ele sem rodeios: "Você nunca será papa".
Em alusão aos conhecidos escândalos reais de abusos sexuais praticados por padres, ele afirma: "nada apavora mais a nossa cúria do que a ideia de novos escândalos sexuais".
No século 15, o papa Alexandre 6º (1431-1503), da nobre casa dos Bórgia, foi acusado de ter comprado votos para sua eleição. Já no século 16, houve um conclave que durou 72 dias. Nele, um dos candidatos morreu sob rumores de que teria sido envenenado.
Naquela época, os banqueiros de Roma faziam apostas sobre o possível vencedor, criando uma linha direta entre a história antiga e a atmosfera circense do mundo de hoje.
Em 2013, a reportagem da BBC descreveu: "A Praça de São Pedro se transformou em uma espécie de Coliseu. Em todos os pontos estratégicos, estão as tendas de TV esperando pelo início dos jogos."
Na mesma ocasião, o jornal britânico The Guardian lançou uma seção intitulada "Escolha Seu Papa".
Atualmente, algumas das manobras vêm a público. Antes do início da última votação, em 2013, cardeais americanos foram obrigados a deixar de dar entrevistas, por pressão de outros cardeais. Mas se sabe que cardeais italianos continuaram a vazar notícias para a imprensa.
No filme, grande parte das pressões pelo voto ainda acontece nos bastidores, antes e depois do início oficial do conclave.
Wakin conta que, durante esse período, "os cardeais fazem refeições juntos com frequência e podem lançar indicações sobre quem eles acham que seria o melhor candidato".
Esta realidade é um elemento central do filme – mas os candidatos da ficção fazem mais do que simplesmente dar indicações.
Berger concorda que Conclave é conduzido, em grande parte, pela política. Mas ele destaca que existe "uma espécie de segunda camada profunda que é o real tema do filme" – nomeadamente, a turbulência interna de Lawrence.
"Ele tem uma crise de fé", explica o diretor. "Ele diz: 'como cardeal, tenho dificuldades com a oração'. É como se eu dissesse 'tenho dificuldade para confiar nas imagens capturadas pelo meu câmera'. É uma crise existencial."
Berger afirma que os espectadores em geral podem se identificar com o problema.
"No caso, é a religião, mas poderia também ser a confiança interna. É o que realmente me interessou e o motivo por que quis fazer o filme."
Outro ponto limitado, mas fundamental, de Conclave é o papel de Isabella Rossellini como irmã Agnes. Ela é responsável pelas freiras convocadas para cozinhar, limpar e prestar serviços em geral aos cardeais.
Elas devem ficar em silêncio ao fundo, mas, como diz Agnes em uma cena que marca uma reviravolta no roteiro: "Deus nos deu olhos e ouvidos".
Berger conta que "sempre disse para Isabella: 'quando você estiver em cena, precisamos realmente ver você e o que você pensa, estar com você'."
"Por isso, ela está sempre em close, ela não é apenas parte da cena. A estrutura patriarcal sofre uma quebra com este tema."
Todos estes elementos latentes, incluindo o papel de Agnes, levam a um final chocante que merece ser preservado, sem spoilers.
"Não coloquei no final apenas uma espécie de reviravolta divertida", conta Harris. "Ele é construído no próprio tecido que forma o romance e o filme."
O escritor recebeu o apoio de uma das suas fontes. "Ele morreu, infelizmente, de forma que tenho certeza de que ele não irá se importar se eu disser seu nome. Recebi a ajuda do cardeal inglês Cormac Murphy-O'Connor."
Harry conta que enviou uma cópia do livro para o cardeal. E, "para minha surpresa, ele me escreveu uma carta de admirador a respeito, dizendo: 'É exatamente como é um conclave.'"
"'O seu cardeal central é exatamente como nós, cardeais, gostaríamos de ser. E, quanto ao final, eu disse a mim mesmo que é apenas um romance.'"
"Conclave" tem lançamento previsto no Brasil em janeiro de 2025.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
Fonte: correiobraziliense
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