Caso saia vitoriosa na eleição desta terça-feira (05/11), a democrata Kamala Harris se tornará a primeira mulher eleita presidente dos Estados Unidos.
A vice-presidente, cujo pai nasceu na Jamaica, e a mãe, na Índia, também é a primeira mulher negra e a primeira pessoa de origem sul-asiática a concorrer à Casa Branca por um dos dois principais partidos políticos dos Estados Unidos.
No entanto, a natureza histórica de sua candidatura não tem ganhado destaque em discursos, entrevistas ou propagandas eleitorais.
Harris se tornou a candidata democrata depois que o presidente Joe Biden desistiu de concorrer à reeleição, em julho.
Desde que começou sua campanha, ela tem evitado focar em seu gênero ou identidade racial, e prefere salientar suas qualificações para o cargo e a promessa de que, se for eleita, irá governar para todos.
Essa estratégia contrasta com a última vez em que uma mulher concorreu à Casa Branca por um dos dois grandes partidos americanos.
Em 2016, a democrata Hillary Clinton adotou como um dos temas centrais de sua campanha a ideia de “quebrar o teto de vidro” que impedia que mulheres chegassem à Presidência do país.
Clinton acabou vencendo no voto popular, com quase 66 milhões de votos, mas não no Colégio Eleitoral, e perdeu a disputa para o republicano Donald Trump.
Oito anos depois, Trump é novamente o candidato republicano, e desta vez os democratas apostam em uma abordagem diferente para enfrentar o adversário.
Vários fatores parecem pesar nessa decisão estratégica, entre eles o estilo pessoal de Harris, que ao longo de sua carreira quebrou várias barreiras, mas sempre evitou dar atenção demasiada ao fato de “ser a primeira”.
Muitos observadores salientam que Harris está deixando o fato óbvio de que é mulher falar por si. Além disso, lembram que o foco identitário traz o risco de afastar parte do eleitorado.
“(Harris) precisa navegar entre o potencial de sua identidade para energizar certos segmentos de eleitores e o risco de alienar outros”, diz à BBC News Brasil a cientista política Mara Ostfeld, professora da Universidade de Michigan.
Para Ostfeld, destacar a identidade de Harris dificilmente mudará a posição tanto dos eleitores que já estão motivados pela perspectiva de eleger a primeira mulher presidente quanto dos que resistem à ideia.
“No entanto, há um terceiro segmento de eleitores que são indiferentes ou não têm certeza sobre como se sentem em ter uma mulher como presidente”, ressalta Ostfeld.
“Parece provável que sua estratégia esteja focada em minimizar as diferenças percebidas por esses eleitores, com o objetivo de não amplificar qualquer incerteza ou desconforto que possam ter sobre uma mulher ocupar a Presidência.”
Segundo Debbie Walsh, diretora do Center for American Women and Politics (CAWP), centro que estuda a participação das mulheres na política americana e é ligado à Universidade Rutgers, em Nova Jersey, os eleitores sabem que “é evidente que, se ela vencer, será a primeira (mulher)”.
“As pessoas que estão empolgadas com a ideia de ela ser a primeira mulher eleita presidente, a primeira mulher negra, a primeira pessoa de origem asiática, já querem apoiá-la. Seu trabalho é tentar persuadir os que ainda não decidiram se podem votar nela”, diz Walsh à BBC News Brasil.
“De certa forma, como Hillary Clinton veio antes, (como já) tivemos uma mulher indicada pelo Partido Democrata, Harris talvez não precise (destacar) tanto isso”, observa Walsh.
Quando Clinton concorreu à Presidência, em 2016, o significado histórico de sua candidatura era ressaltado desde o slogan “Eu estou com ela” até seus terninhos brancos, cor simbólica que remete ao movimento pelo sufrágio feminino no país.
Clinton era a primeira mulher a concorrer à Casa Branca por um dos grandes partidos. Seu gênero era usado como fator para motivar a base eleitoral e descrito não como obstáculo, mas como vantagem.
Em um discurso que ficou famoso, ela disse: “Não estou pedindo que votem em mim simplesmente porque sou mulher, estou pedindo que votem em mim por meus méritos”.
Logo em seguida, completou: “Acho que um desses méritos é que sou uma mulher. E posso levar essa visão e perspectiva para a Casa Branca”.
O simbolismo se estendeu até o dia da votação. Clinton planejava realizar sua festa da vitória sob um “teto de vidro” real, no Javits Center, centro de convenções em Nova York.
Mas aquela noite não acabou em festa, e o trauma da derrota, que pegou muitos de surpresa, levou os democratas a tentarem evitar repetir erros do passado.
Na Convenção Nacional Democrata deste ano, em agosto, muitas das mulheres estavam novamente de branco, e Clinton voltou a usar a imagem do teto de vidro.
“Do outro lado desse teto de vidro está Kamala Harris, levantando a mão e fazendo o juramento de posse como 47ª presidente dos Estados Unidos”, disse, ao discursar.
Harris, no entanto, optou por vestir azul-marinho ao aceitar oficialmente a nomeação como candidata do Partido Democrata, e não fez nenhuma menção direta ao fato de ser mulher.
Disse que aceitava a nomeação “em nome de todos os americanos, independentemente de partido, raça, gênero ou da língua que sua avó fala.”
“Ela passou a maior parte do tempo falando sobre o que fará pelo país (caso eleita), como está preparada e capaz, como tem experiência, é qualificada, forte”, observa Walsh.
O fato de Harris poder se tornar a primeira mulher a liderar os Estados Unidos não é totalmente ignorado pela campanha democrata.
“De muitas maneiras, outros estão levantando a questão da natureza histórica de sua campanha”, salienta Walsh. “(O candidato a vice) Tim Walz fala sobre isso, muitos apoiadores estão falando sobre isso, e a imprensa está falando sobre isso.”
Mas ela própria evita fazer de seu gênero um ponto central, tocando no tema de formas mais sutis, como em menções à sua carreira de promotora dedicada a defender mulheres e crianças contra “predadores” ou em sua defesa do direito ao aborto.
Essa bandeira ganhou ainda maior relevância em campanhas democratas desde 2022, quando a Suprema Corte americana, com três de nove juízes nomeados por Trump, anulou a decisão que durante meio século garantiu o direito constitucional ao aborto no país.
“Se você observar, Kamala Harris está salientando (o fato de) ser mulher à sua própria maneira”, diz à BBC News Brasil a cientista política Rosalyn Cooperman, professora da University of Mary Washington, na Virgínia.
Cooperman, que é especialista em mulheres na política americana, observa que Harris toca no tema quando fala para fatias específicas do eleitorado, como mulheres negras.
“Em termos de sua estratégia geral de campanha, uma coisa não exclui a outra”, afirma Cooperman. “Ela também consegue falar de maneira convincente com grupos que se importam profundamente com a ideia de ‘ter alguém que se parece conosco para nos representar’.”
Ao longo de sua trajetória como promotora, procuradora-geral da Califórnia, senadora e vice-presidente, Harris nunca fez de sua identidade o foco principal, mesmo quando interlocutores insistem no assunto.
Em entrevista recente à rede CNN, quando uma pergunta tocou nesse tópico, Harris respondeu: “Estou concorrendo porque acredito que sou a melhor pessoa para fazer esse trabalho neste momento, para todos os americanos, independentemente de raça e gênero”.
Muitos comparam sua estratégia à de Barack Obama, o primeiro (e único) homem negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos.
Durante sua campanha vitoriosa, em 2008, o democrata usou uma mensagem com apelo para o eleitorado mais amplo e destaque para suas propostas e para o desejo de ser “um presidente para todos os americanos”.
“Ele raramente falava sobre raça”, ressalta Walsh. “Ele não falava sobre se tornar a primeira pessoa negra eleita presidente.”
Walsh lembra que, em 2008, quando disputou as primárias democratas para ser a candidata do partido, mas perdeu para Obama, Clinton seguiu a sabedoria convencional, e não colocou seu gênero em primeiro plano.
“Ela sempre se identificou muito (com a questão de gênero), e meio que concorreu contra o que era sua marca. Mas não deu certo”, afirma Walsh. “Acho que, quando concorreu em 2016, ela foi mais autêntica sobre isso. Era algo que realmente a definia.”
No entanto, o foco em gênero, apesar de empolgar a base de apoio, também pode provocar rejeição. Muitos eleitores estão dispostos a votar em uma mulher, mas dão mais importância às propostas e competência do candidato, não ao potencial de fazer história.
“Se você olhar para Hillary Clinton, mulheres brancas, especialmente mulheres brancas casadas, votaram principalmente em Donald Trump”, observa Cooperman. “A noção de que mulheres votam em mulheres não leva em conta o fator partidário.”
“É importante lembrar que Hillary Clinton não tinha nenhum roteiro, nenhuma mulher havia sido candidata à Presidência por um grande partido”, ressalta Walsh. “Além disso, seu adversário era um tipo de candidato contra quem, francamente, nenhuma pessoa havia concorrido.”
A experiência de Clinton serviu de exemplo para Harris, que não apenas concorre como a segunda mulher a buscar o cargo por um grande partido mas, também, contra o mesmo adversário da antecessora.
“De certa forma, outro presente de Hillary Clinton para Kamala Harris é que sua perda mobilizou as mulheres politicamente neste país de uma forma que não víamos há muito tempo”, salienta Walsh.
A derrota de Clinton para Trump desencadeou marchas de protesto ao redor do país e levou a uma maior participação de mulheres em organizações de base e a uma onda de candidaturas femininas a cargos públicos.
As eleições de meio de mandato de 2018 registraram números recordes de mulheres concorrendo e sendo eleitas para cargos executivos e legislativos.
Segundo dados do CAWP, o número de mulheres governadoras nos Estados Unidos é hoje o dobro do que era em 2016, passando de seis para 12. Também há mais senadoras e deputadas federais.
Após quase quatro anos como vice, Harris concorre à Presidência em um momento em que os eleitores americanos estão mais acostumados com uma candidata mulher.
"Embora ainda me doa não ter conseguido quebrar esse teto de vidro mais alto e duro, tenho orgulho de que minhas duas campanhas presidenciais fizeram parecer normal ter uma mulher no topo da chapa”, escreveu Clinton em julho, em um artigo de opinião no jornal The New York Times.
A menos de um mês das eleições, esta será novamente uma disputa acirrada. Pesquisas de intenção de voto mostram Harris e Trump praticamente empatados, especialmente nos Estados em que serão decisivos, com diferenças dentro da margem de erro.
Fonte: correiobraziliense
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