Kamala Harris, a mulher de 60 anos que pode tomar posse como a primeira presidente dos Estados Unidos, já fez história em 2021, quando se tornou a primeira vice-presidente mulher do país, e a primeira negra, e de origem asiática, a ocupar o cargo.
A trajetória profissional da candidata democrata à presidência começou como promotora de Justiça em seu Estado natal, a Califórnia, e ela foi subindo na carreira até chegar ao posto de procuradora-geral do mesmo Estado.
De lá, ela foi para o Senado dos EUA e, após um mandato, se tornou vice-presidente dos Estados Unidos.
A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, relembra cinco momentos que marcaram sua carreira — e que de alguma forma refletem seus valores e seus pontos fortes e fracos.
Em 2003, Kamala Harris conquistou seu primeiro cargo eletivo como promotora distrital de San Francisco.
Pouco depois de assumir o cargo, houve um caso que marcou sua carreira.
O policial Isaac Espinoza e seu parceiro estavam investigando um suspeito em 10 de abril de 2004. O homem sacou um fuzil AK-47 e atirou nos policiais.
Espinoza, de 29 anos, foi atingido por vários disparos, e morreu. Seu companheiro levou um tiro na perna e foi atendido em um hospital local.
O suspeito de 21 anos, identificado como David Hill, foi detido e colocado sob custódia.
Poucos dias depois, antes mesmo do funeral do policial, Harris anunciou que não pediria a pena de morte para Hill, como muitos esperavam em um caso como esse.
Foi uma decisão que irritou muitos, especialmente os colegas de Espinoza.
"Isaac pagou o preço mais alto", afirmou Gary Delagnes, presidente da Associação de Policiais de San Francisco, durante o funeral.
"E falo em nome de todos os policiais ao exigir que seu assassino também pague o preço mais alto."
Em 1973, a Califórnia havia aprovado uma lei de "circunstâncias especiais" que tornava o assassino de um policial elegível para a pena de morte.
Mas Harris permaneceu fiel à sua oposição à pena máxima, posição que ela havia deixado clara durante sua campanha para promotora distrital.
Em seu livro Smart on Crime, de 2009, Harris escreveu: "A suposição generalizada de que o simples aumento da pena para qualquer crime impedirá automaticamente que mais pessoas o cometam é um mito."
Seu raciocínio não repercutiu dentro da polícia e, desde então, o relacionamento de Harris com as autoridades policiais foi prejudicado.
Com o tempo, porém, o próprio inspetor Delagnes aprendeu a valorizar o fato de Harris ter honrado seus princípios com uma decisão que rendeu tantas críticas.
"Teria sido muito fácil para ela dizer: 'Ei, sou contra a pena de morte, mas esse cara matou um policial, e vou mudar de opinião sobre isso'. Há algo notável na convicção dela, ela foi coerente", afirmou o policial em 2021.
Com a mesma convicção que manifestava sua oposição à pena de morte, Harris foi como promotora uma defensora ferrenha dos direitos sociais.
E muito antes de o casamento gay ser legalizado e estabelecido nos EUA, a agora candidata à presidência estava na vanguarda da batalha pela união homoafetiva.
Ele demonstrou isso em duas ocasiões importantes.
A primeira foi em 2004, durante o chamado Inverno do Amor em San Francisco.
O prefeito da época, Gavin Newsom, ordenou a aprovação de vários casamentos entre pessoas do mesmo sexo, apesar do fato de não haver nenhuma lei que os reconhecesse.
Harris, que acabara de ser nomeada promotora distrital de San Francisco, não hesitou e oficializou vários casamentos, que logo depois seriam anulados.
Com esse gesto, ela se distanciou da maioria das figuras democratas da época, que levaram vários anos para apoiar estas uniões.
Barack Obama, por exemplo, fez isso em 2012; e Hillary Clinton, em 2013.
Em sua autobiografia, As verdades que nos movem (Intrínseca, 2021), Harris explicou que sua decisão de oficializar os casamentos foi espontânea.
"Foi uma sensação maravilhosa quando recebemos a multidão de casais apaixonados, um por um, para se casar naquele momento. Foi diferente de tudo que eu já tinha feito parte antes. E foi lindo."
A questão do casamento homoafetivo voltou a ter um significado importante em sua carreira quando ela se tornou procuradora-geral da Califórnia em 2010.
Dois anos antes, os eleitores daquele Estado haviam decidido pela proibição da união entre pessoas do mesmo sexo ao aprovarem a chamada Proposta 8.
Ao assumir seu novo cargo, Harris disse que não defenderia a norma.
A Suprema Corte dos EUA finalmente derrubou a medida controversa em 2013, e Harris oficializou o primeiro casamento gay legalizado.
Ela foi à prefeitura, e casou duas mulheres, Kris Perry e Sandy Stier, que faziam parte do coletivo que apresentou o recurso contra a Proposta 8 à Suprema Corte.
Atualmente, o casamento homoafetivo é um dos pilares da plataforma do Partido Democrata — e conta até mesmo com o apoio de setores republicanos.
Mas os ativistas ainda veem Harris como uma pioneira nesta questão devido ao seu compromisso inicial.
Após dois mandatos como procuradora-geral da Califórnia, à frente do segundo maior Departamento de Justiça do país, Harris decidiu dar uma guinada em sua carreira e concorreu ao Senado nas eleições de 2016.
A sua vitória em 8 de novembro teve um sabor agridoce para a democrata: Donald Trump havia derrotado Hillary Clinton nas eleições presidenciais naquela mesma noite.
Já em seu primeiro discurso após a vitória, Harris se colocou no centro da resistência à presidência de Trump.
Mas, sem dúvida, seu momento mais notável desta fase ocorreu em 2018, quando, como membro da Comissão de Justiça do Senado, ela participou das audiências para avaliar Brett Kavanaugh como indicado de Trump para ser juiz da Suprema Corte.
O conservador Kavanaugh, que estava sob escrutínio depois que uma mulher o acusou de estuprá-la na época da faculdade, teve em Harris uma inquisidora incisiva e implacável.
A senadora usou suas habilidades de promotora para questionar Kavanaugh sobre sua posição em relação ao direito ao aborto.
Harris tentou fazer com que o juiz dissesse abertamente se trabalharia ou não para derrubar a decisão histórica Roe x Wade, então em vigor, que garantia proteção constitucional ao aborto nos EUA.
Em um momento chave, ela fez a pergunta a Kavanaugh que viria a representar aquelas audiências:
"Você se lembra de alguma lei que dê ao governo poder sobre o corpo dos homens?"
Hesitante, Kavanaugh acabou respondendo que não.
A sabatina veemente de Harris se tornou viral nos dias que se seguiram — e fez com que sua perspicácia e capacidade de enfrentar oponentes de alto nível se tornassem mundialmente conhecidas.
A partir de então, Harris se tornou uma estrela em ascensão entre as fileiras democratas e ganhou destaque nacional.
Por isso, em 2019, o anúncio de sua candidatura à indicação do Partido Democrata para as eleições presidenciais de 2020 não foi tão surpreendente.
Mas essa aventura presidencial não durou muito para Harris.
Embora ela tenha começado com força, com uma boa participação no primeiro debate entre os vários candidatos à indicação democrata, sua campanha foi perdendo força — e ela não chegou a disputar as primárias que começaram no início de 2020.
Meses depois, em um gesto que demonstrou sua falta de ressentimento pela tenacidade que Harris havia demonstrado contra ele, Biden a escolheu como sua companheira de chapa e candidata a vice-presidente para a eleição de 3 de novembro de 2020.
E com a vitória da chapa democrata, Harris ocupou o segundo cargo mais importante na política dos EUA.
Poucos meses depois de assumir a vice-presidência, Harris concedeu uma entrevista que representou um divisor de águas em seu relacionamento com a imprensa — e expôs sua dificuldade em lidar com situações desconfortáveis.
Biden a havia encarregado de gerenciar as relações diplomáticas com o México e a América Central, a fim de combater a raiz do problema migratório.
Em uma viagem à Guatemala, em junho de 2021, Harris pronunciou seu famoso "Não venham para os EUA" para os migrantes, uma mensagem que gerou críticas por sua aspereza em um contexto em que se esperava uma maior disposição para cooperar.
Foi durante esta mesma visita que ocorreu a entrevista que deixou transparecer a irritação da vice-presidente em relação a uma das questões mais importantes para seu governo.
Com uma voz calma, o âncora da rede NBC News, Lester Holt, perguntou a ela por que não visitar a fronteira, argumentando que esta seria uma maneira de ver pessoalmente o que estava acontecendo lá.
Ela ficou na defensiva e não respondeu diretamente, então Holt insistiu em perguntar se ela tinha planos de ir à fronteira.
"Em algum momento, iremos à fronteira. Já estivemos na fronteira. Então, com toda essa questão da fronteira, estivemos na fronteira. Estivemos na fronteira", repetiu Harris.
"Você não esteve na fronteira", respondeu Holt.
"E não estive na Europa", exclamou Harris com uma certa irritação. "E quero dizer, não entendo o que você está sugerindo. Não estou menosprezando a importância da fronteira."
A vice-presidente se esquivou da imprensa por cerca de um ano após esta entrevista, que foi classificada como "desastrosa".
Suas aparições na mídia eram escassas e intermitentes, o que rendeu a ela a reputação de não saber lidar com a imprensa, exceto em ambientes controlados, sem espaço para improvisos.
Uma faceta que melhorou notavelmente no último ano, especialmente durante a acelerada campanha presidencial de apenas quatro meses, na qual os especialistas reconhecem ter visto uma Harris mais acessível e espontânea em vários meios de comunicação.
Voltemos a 2022 por um momento.
Enquanto a popularidade de Harris diminuía e suas aparições públicas se tornavam escassas, a Suprema Corte dos EUA estava discutindo uma questão que, paradoxalmente, acabaria trazendo a vice-presidente de volta aos holofotes.
Foi o caso Dobbs x Jackson Women's Health Organization, no qual a Suprema Corte dos EUA acabou derrubando o direito nacional ao aborto, devolvendo aos Estados o poder de legislar sobre a questão.
Faltando apenas alguns meses para as eleições de meio de mandato de 8 de novembro, Harris retomou um papel de liderança na cena política do país.
A vice-presidente se tornou porta-voz da batalha pelo direito de escolha e expandiu seu discurso para além da causa do aborto, passando a defender de forma abrangente o conceito de liberdade.
"Esta é a primeira vez na história da nossa nação que um direito constitucional foi retirado do povo dos Estados Unidos: o direito à privacidade", disse ela em uma reação inicial à decisão da Suprema Corte.
Estas palavras de dois anos atrás estão fortemente refletidas nos discursos de campanha atuais de Harris.
Em cada um de seus comícios, a candidata democrata defende os direitos reprodutivos, enfatizando a liberdade das mulheres de tomar decisões sobre seus corpos "sem que o governo diga a elas o que fazer".
Suas promessas de mudança e de virar a página, e seu slogan "não podemos voltar ao passado" são, até certo ponto, inspirados nessa decisão judicial.
Uma decisão que foi um grande revés para os democratas, que confirmou os temores que Harris manifestou naquela sabatina de Brett Kavanaugh, quando ela era senadora, e que acabou por catapultá-la para a disputa eleitoral mais importante da sua vida.
Fonte: correiobraziliense
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