Faltavam apenas quatro dias para as eleições americanas quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), contrariando uma espécie de tradição da diplomacia brasileira, declarou seu apoio à então candidata e vice-presidente democrata Kamala Harris.
Fiel ao seu estilo, Lula não se limitou a elogiar Harris. Ele não poupou críticas ao agora futuro presidente americano: Donald Trump.
"Nós vimos o que foi o presidente [Donald] Trump no final do seu mandato, ou seja, fazendo aquele ataque ao Capitólio. Uma coisa que era impensável acontecer nos Estados Unidos", disse Lula em entrevista à emissora francesa TF1+.
A declaração de Lula, apesar de vista como uma quebra de protocolo por dois diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado, expressou apenas o que já era sabido: a distância política e ideológica entre o petista e Trump.
Mas e agora que Trump governará o país por mais quatro anos? O que esperar da relação entre os presidentes das duas maiores democracias e economias do continente americano?
Será que as diferenças entre os dois falarão mais alto a ponto de prejudicar as relações exteriores entre os dois países que, neste ano, completaram 200 anos?
Especialistas e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a tendência é que a relação entre Lula e Trump seja de distanciamento político, de um lado, e pragmatismo de outro.
Eles afirmam que a futura relação entre Lula e Trump dificilmente será marcada pelo tom amistoso, ainda que distante, da relação que se criou entre o petista e o atual presidente Joe Biden.
Pesaria, segundo eles, o fato de que Trump, assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), serem vistos como lideranças de uma direita radical responsável por questionamentos aos resultados das eleições de 2020, nos Estados Unidos, e de 2022, no Brasil.
Os especialistas dizem acreditar que o Brasil pode enfrentar problemas concretos se Trump cumprir a promessa de aumentar tarifas sobre produtos importados, uma das duas principais bandeiras de campanha, o que poderia prejudicar as exportações do país.
Além disso, eles pontuam que se prevalecer a política externa anterior de Trump, a tendência é que os Estados Unidos se isolem e passem a cooperar menos em temas que são considerados importantes para o Brasil como as mudanças climáticas.
Também há o receio de que a ascensão de Trump dê um novo ânimo a movimentos de direita que tentam reabilitar o ex-presidente Bolsonaro, inelegível até 2030, e de quem Trump é relativamente próximo.
Por outro lado, eles afirmam que a antiguidade da ligação entre os dois países e a complexidade com a qual Brasil e Estados Unidos se relacionam fazem com que o relacionamento interpessoal entre Lula e Trump tenda a interferir de forma apenas limitada nas relações entre as duas nações.
"Nós vamos ser uma nação de tarifas. Não vai ser um custo para você. Vai ser um custo para outro país", disse Trump a uma plateia empolgada durante um comício em setembro deste ano.
A frase sintetiza uma das principais propostas do republicano ao longo da campanha: aumentar as tarifas sobre produtos importados.
Trump argumenta que o "tarifaço" incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país.
A promessa é de que ele imponha tarifas de 10% a 20% para a maioria dos parceiros comerciais americanos e de 60% sobre produtos chineses. Em casos específicos, essa taxação poderia chegar a até 100%.
E é justamente por promessas como essas que especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a tendência é de que a economia americana entre em uma fase ainda mais protecionista sob Trump, o que poderia ter impacto direto sobre a economia brasileira.
Os Estados Unidos são um dos maiores parceiros comerciais do Brasil.
Segundo dados do governo federal, o país é o segundo principal destino das exportações brasileiras, atrás apenas da China. Além disso, os Estados Unidos são o terceiro maior fornecedor de produtos importados ao Brasil.
Historicamente, o Brasil tem um déficit na sua balança comercial com os americanos.
Entre 2014 e novembro de 2024, o Brasil exportou US$ 315 bilhões em produtos para os Estados Unidos. No mesmo período, o Brasil importou US$ 367 bilhões daquele país. Isso representa um déficit de US$ 52 bilhões.
Novas tarifas, apontam os especialistas, poderiam aumentar ainda mais esse déficit.
"É bem provável que haja uma ampliação do protecionismo, com impacto para as exportações brasileiras e um aumento da pressão em relação aos países da América Latina", diz à BBC News Brasil o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Haroldo Ramanzini Júnior.
O professor explica que o impacto de um "tarifaço" como o prometido por Trump pode ser ainda mais agudo por conta da natureza da pauta de exportações brasileiras aos Estados Unidos.
Segundo ele, parte significativa dos produtos brasileiros exportados para aquele país é composta por produtos de maior volume agregado ou semimanufaturados.
A imposição de tarifas deixaria esses produtos mais caros para o consumidor americano, o que poderia impactar cadeias produtivas e industriais no Brasil.
Segundo o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, esse temor de uma política econômica protecionista seria um dos motivos pelos quais o presidente Lula se manifestou de forma crítica a Trump e favorável a Kamala Harris.
"??A postura de Lula se justifica por temores de que uma vitória de Trump possa significar alguns prejuízos ao Brasil no campo da economia", disse o professor.
Outro que também vê a vitória de Trump com um possível problema para as exportações brasileiras é o professor de Relações Internacionais da Universidade de Harvard e ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) Houssein Kalout.
"O Trump sabe que o Brasil vai ter que amortizar [suportar] algumas pressões. A questão é saber se o Brasil vai conseguir. Acho que, com Trump, pode haver políticas protecionistas, elevação de tarifas, estabelecimento de cotas em vários itens da pauta exportadora brasileira como aço e carne [...] como é que o Brasil vai reagir? Isso pode ser um ponto de inflexão", diz Kalout à BBC News Brasil.
O professor Haroldo Ramanzini Júnior, da UnB, destaca uma outra promessa de Trump que pode afetar o Brasil diretamente: o estabelecimento de tarifas de importação para países que esteja tentando depender menos do dólar em suas transações comerciais internacionais.
"Isso eventualmente pode impactar ou causar uma pressão ao Brasil e às posições brasileiras", afirma o professor.
A redução da dependência do dólar tem sido uma das principais bandeiras do governo do presidente Lula em seu terceiro mandato.
A ideia é que o Brasil e outros países estabeleçam mecanismos de trocas comerciais em suas moedas locais para não ficarem à mercê das flutuações do dólar ou de problemas como a falta de reservas cambiais.
Em outubro de 2023, Brasil e China realizaram a primeira transação comercial entre os dois países usando, exclusivamente, real e yuan.
Outra consequência provável da eleição de Trump, segundo os especialistas, é a adoção de uma postura unilateralista e isolacionista da política externa dos Estados Unidos.
Esse padrão, eles apontam, foi observado durante o primeiro mandato de Trump e permanece forte em seus discursos atuais.
O isolacionismo em política externa é a adoção de uma postura que foca mais nos interesses imediatos do próprio país e menos na possibilidade de cooperação internacional para o enfrentamento de temas comuns.
Um exemplo dessa prática durante o governo Trump aconteceu em 2017, quando ele retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
Outro exemplo foi a adoção de um tom mais crítico em relação aos parceiros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para que eles destinassem mais verbas ao funcionamento da aliança militar.
Na avaliação dos especialistas, uma postura mais unilateralista dos Estados Unidos iria na direção contrária da defendida pelo Brasil.
"A promessa é de que Trump tenha uma visão e uma postura mais unilateralista, o que prejudica o modo de inserção do Brasil nas relações internacionais. O Brasil aposta, historicamente, no multilateralismo, e nos foros diplomáticos. Isso seria outro elemento complicador nas relações entre os dois países em uma eventual vitória de Trump", diz Dawisson Belém Lopes.
Ramanzini Júnior aponta que uma das áreas em que o isolacionismo americano pode afetar mais o Brasil é, justamente, no combate às mudanças climáticas.
"Sob Trump, os Estados Unidos tendem a assumir uma posição mais autocentrada ou isolacionista. Um dos temas em que isso deve ter impactos diretos é na questão climática, que demanda cooperação internacional e que nenhum país consegue caminhar sozinho. Sem os Estados Unidos, avançar vai ser muito mais desafiador", diz o professor.
Um dos pontos destacados por Belém Lopes é a possibilidade de que o isolacionismo de Trump possa ter um efeito colateral que, ironicamente, contribuiria com uma posição brasileira.
Trata-se do conflito entre Rússia e Ucrânia. Biden declarou apoio à Ucrânia desde o início do conflito e enviou bilhões de dólares em armamentos e assistência ao governo ucraniano.
Desde que assumiu o governo, porém, Lula vem criticando a atuação dos Estados Unidos na disputa e defendendo um plano de paz entre os dois países. O petista chegou a dizer que os Estados Unidos estariam incentivando a guerra.
"É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz", disse o presidente em abril de 2023.
Por conta de declarações sobre o assunto, Lula chegou a ser criticado por um suposto alinhamento à Rússia.
Para o professor da UFMG, a chegada de Trump ao poder pode levar a um menor engajamento dos Estados Unidos no conflito.
"Eu acho que com o Trump no poder, a posição do Brasil passa a ser uma posição que não incomodará tanto", afirma.
Um dos pontos destacados por Ramanzini Júnior e Belém Lopes é o possível impacto simbólico que a vitória de Trump pode ter sobre a política doméstica brasileira.
Como principal líder da direita americana, Trump tem a simpatia do ex-presidente Jair Bolsonaro, que chegou a declarar seu apoio ao republicano na reta final das eleições americanas.
Segundo Ramanzini, a vitória de Trump pode energizar setores do bolsonarismo que tentam reabilitar Bolsonaro politicamente.
"A vitória de Trump tem um efeito, sim, na política doméstica do Brasil e de outros países porque fortalece as forças políticas de extrema-direita. Esses atores no Brasil veem Donald Trump como uma espécie de referência seja do ponto de vista discursivo, seja do ponto de vista das estratégias de atuação política", afirma Ramanzini Júnior.
Belém Lopes segue a mesma linha de raciocínio.
"A vitória de Trump joga água no moinho do bolsonarismo no Brasil. Isto é evidente. Ainda que seja apenas do ponto de vista simbólico, isso vai gerar uma energização desse movimento", diz o professor da UFMG.
Ramanzini Júnior diz avaliar que, apesar dessa energização, é difícil imaginar que esse processo possa gerar uma reabilitação política de Bolsonaro de forma automática.
"Acho que eles [atores da direita brasileira] vão tentar [reverter a inelegibilidade de Bolsonaro], mas não dá para garantir que eles terão sucesso. O Brasil tem outro presidente atualmente que tem não apenas legitimidade doméstica, mas internacional", afirma o professor.
Belém Lopes argumenta que o Brasil já teria dado mostras de que seria capaz de lidar com uma eventual pressão oriunda de lideranças de direita dos Estados Unidos.
Ele citou como exemplo a decisão tomada e mantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu o funcionamento da plataforma X (antigo Twitter), comandado por um dos maiores apoiadores de Trump, o bilionário Elon Musk, em agosto deste ano.
“??O Brasil tem poderes independentes entre si e, recentemente, um expoente da ultradireita global, o Elon Musk, atentou contra o STF e perdeu”, diz o professor.
Fonte: correiobraziliense
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