Robert (nome fictício) gostava de fazer reformas em casa e também de construir móveis de madeira. Aos 59 anos, descobriu uma paixão: transformar sucata em esculturas de animais. Ele dizia enxergar criaturas no lixo de ferro que catava, e, assim, criava pássaros de martelo, asas forjadas nas lâminas de uma serra, pés feitos de vergalhão. Naquela mesma época, foi diagnosticado com demência frontotemporal, condição que afeta o lobo frontal e temporal do cérebro, alterando a personalidade e o comportamento.
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À medida que a doença progredia, a arte de Robert mudava. As esculturas de animais desapareceram, dando lugar a formas abstratas e monocromáticas. Aos 64 anos, uma ressonância magnética cerebral revelou que o córtex temporal estava atrofiado. Ele já estava com comprometimento severo na linguagem e no funcionamento motor. Foi o último ano de sua vida. Quanto à paixão por criar arte, Robert esculpiu borboletas até a semana em que morreu.
O caso do paciente, descrito em um artigo científico, não é isolado. Condições neurodegenerativas costumam afetar a criatividade, seja transformando pessoas comuns em pintores, ou apagando a inventividade de indivíduos anteriormente férteis nessa área. Agora, pesquisadores do Brigham and Women's Hospital, em Boston, nos Estados Unidos, mapearam um circuito cerebral intimamente associado à criação artística que, em pacientes com lesão no órgão, aparece danificado.
Os cientistas analisaram dados de 857 pessoas e 36 ressonâncias magnéticas (fMRI) e descobriram que as mudanças na criatividade nos pacientes com lesão cerebral ou neurodegeneração dependem da localização dos neurônios comprometidos dentro do "circuito artístico". O resultado do estudo foi publicado na revista Jama.
"Queríamos responder às perguntas: 'Quais regiões do cérebro são essenciais para a criatividade humana e como isso se relaciona com os efeitos de lesões cerebrais?'", relata Isaiah Kletenik, neurologista do Brigham and Women´s Hospital e coautor sênior do artigo. "Descobrimos que muitos comportamentos humanos complexos, como a criatividade, não são mapeados em uma região cerebral específica, mas em circuitos cerebrais específicos", complementou, em nota, Michael D. Fox, que ajudou a desenvolver as técnicas de mapeamento de redes usadas na pesquisa.
Primeiramente, os cientistas analisaram os dados da ressonância magnética para identificar regiões cerebrais ativadas por diferentes meios, como desenho, escrita criativa e criação musical. Eles, então, avaliaram informações de pacientes que tiveram mudanças na criatividade devido a lesões no cérebro ou doenças neurodegenerativas.
"Algumas pessoas com doenças neurológicas passam por mudanças no comportamento criativo e mostram padrões específicos de danos que se alinham com nosso circuito de criatividade", explica Julian Kutsche, primeiro autor do artigo e pesquisador do Centro de Terapêuticas do Circuito Cerebral, em Boston. Segundo ele, as regiões cerebrais ativadas durante as tarefas criativas tinham problemas de conectividade no polo frontal direito, parte do órgão importante para monitoramento e comportamentos baseados em regras.
Segundo Kletenik, a atividade reduzida no polo frontal direito pode se alinhar com a hipótese de que a criatividade requer o desligamento de uma função. "Por exemplo, a criatividade pode depender da inibição de avaliações de autocensura, o que permitiria uma associação livre, fazendo com que a geração de ideias fluam mais livremente. Para ser criativo, você pode ter que desligar seu crítico interno para se permitir encontrar novas direções e até mesmo cometer erros."
Os pesquisadores ressaltam que as descobertas podem ajudar a explicar como algumas doenças neurodegenerativas podem levar a reduções na criatividade, enquanto outras parecem desencadear um aumento paradoxal na inventividade. "O estudo também tem potencial de adicionar um caminho de estimulação cerebral para aumentar a criatividade humana" acredita Kletenik.
O cientista destaca, porém, que as descobertas não se aplicam ao circuito neural envolvido na criatividade como um todo — muitas outras partes do cérebro estão envolvidas em atividades artísticas. "Estamos aprendendo mais sobre a neurodiversidade e como as mudanças cerebrais que são consideradas patológicas podem melhorar a função de algumas maneiras", disse Kletenik. "Essas descobertas nos ajudam a entender melhor como o circuito de nossos cérebros pode influenciar e liberar a criatividade."
A expressão artística reflete como alguém percebe, concebe e se relaciona com o mundo exterior, e não requer eloquência linguística, memória, conhecimento conceitual ou raciocínio abstrato. Sob essa luz, as expressões artísticas de pessoas com demência frontotemporal e outras formas de demência fornecem uma janela para o rico e variado mundo interior experiencial de pacientes que, de outra forma, podem ter dificuldade para se comunicar de maneiras mais convencionais. O comportamento artístico crescente com o início da neurodegeneração nos fornece uma rara oportunidade de testemunhar diretamente a criatividade artística emergente e a sensibilidade estética. Por esse motivo, encorajamos nossos pacientes a perseguirem seu impulso artístico, pois o que eles criam tem a capacidade de surpreender, educar e inspirar.
Michael G. Erkkinen, neurologista do Departamento de Neurologia do Centro de Memória e Envelhecimento da Universidade da Califórnia, em San Francisco
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