O som de uma britadeira ecoa pelo ar.
Bukhara foi um polo comercial da antiga Rota da Seda onde hoje fica o Uzbequistão. Hoje, o turismo é o motor do comércio local e novos hotéis estão surgindo em cada esquina.
Contei três locais em obras em um raio de 100 metros do antigo caravançará – uma espécie de grande estalagem pública que, no passado, acolhia gratuitamente os viajantes.
É nele que vou ficar hospedada. Dali, posso observar o progresso da construção de uma hospedaria a poucos metros de uma madrassa (escola) do século 16. Esta é uma tendência visível em todo o país.
Na capital do Uzbequistão, Tashkent, a construção de um shopping ladeia a avenida que leva até o complexo da mesquita Hazrati Imam, ao lado do cintilante Centro da Civilização Islâmica, quase terminado.
A pequena cidade histórica de Khiva, na fronteira com o Turcomenistão, é cercada por fortificações de barro e não pode se expandir para o lado externo. Mas as residências de palha e barro do seu centro histórico estão sendo derrubadas e substituídas por modernos hotéis.
Talvez estas mudanças sejam mais óbvias em Samarcanda, no sudeste do país. Lá, o comerciante bilionário Bakhtiyor Fazilov despejou rios de dinheiro em projetos chamativos para promover sua cidade. Eles incluem uma nova linha aérea, um aeroporto internacional que foi aberto em 2022 e uma estranha cópia da Disneylândia chamada Silk Road Samarkand, um resort turístico frio e descaracterizado, que fica fora da cidade.
"O conceito da Rota da Seda está sendo aplicado em toda parte", afirma a pesquisadora Svetlana Gorshenina, membro da associação de proteção do patrimônio do Uzbequistão, Alerte Héritage.
"Você tem restaurantes da Rota da Seda, lojas da Rota da Seda, tours da Rota da Seda e agências de turismo dedicadas exclusivamente à Rota da Seda. Ela passou a ser o nosso único atrativo e transforma tudo em algo exótico."
Para ela, "é uma espécie de auto-orientalização, que é um resquício do colonialismo."
Mas a questão é que está funcionando.
O Índice de Desenvolvimento de Viagens e Turismo, publicado pelo Fórum Econômico Mundial, coloca atualmente o Uzbequistão no 78º lugar entre 119 países. O país subiu 16 posições nos últimos cinco anos.
O governo uzbeque vem concentrando investimentos no setor turístico desde setembro de 2023, quando o presidente, Shavkat Mirziyoyev, lançou sua estratégia chamada Uzbequistão 2030 – um enorme plano governamental que detalha os objetivos a serem atingidos por diversos setores até aquela data.
O plano inclui o aumento do número de turistas estrangeiros para 15 milhões, mais que o dobro dos 6,6 milhões de visitantes que o país recebeu em 2023.
O presidente também defendeu a criação de "complexos turísticos", que fornecem acomodações e outros serviços para os turistas em um único lugar.
Foi um desses novos complexos que me trouxe a Bukhara. Trata-se de um terreno de 33 hectares nos limites da cidade velha, onde será construído em breve um complexo de lazer chamado Eternal Bukhara.
Fazilov, o magnata de Samarcanda, também participa deste projeto. Ele é o presidente de uma das maiores empreiteiras do Uzbequistão, a Enter Engineering, que está construindo o complexo.
A empresa é cautelosa em relação aos seus reais planos para o local, até porque o projeto já se mostrou bastante polêmico.
Os planos iniciais informados pela imprensa local descreveram um "parque etnográfico", que recriaria as construções tradicionais do Uzbequistão, como as chaikhanas (casas de chá), além de restaurantes de cozinha uzbeque e um museu sobre a cultura do país.
Mas os modelos em 3D aplicados sobre os altos muros que rodeiam o local da obra mostram blocos com modernas galerias de shoppings e piscinas cintilantes adornadas com arte abstrata.
"Não estamos tentando reproduzir as construções históricas. Não queremos repetir a história, mas criar algo que tenha impacto próprio", declarou à BBC o vice-diretor-geral da Enter Engineering, Rustam Khaydarov.
Sentado em uma construção temporária no local das obras, ao som das escavadeiras, ele explica que aquele "será um local onde as pessoas poderão relaxar, com cafeterias e um centro cultural para que os artistas locais possam exibir a sua arte. E cerca de 70% irão permanecer como áreas verdes."
A Enter Engineering também pretende construir uma série de hotéis cinco estrelas, com até 700 quartos.
"As pessoas ricas já vêm para Bukhara, mas não estão satisfeitas com a qualidade da hospedagem. Por isso, queremos melhorar a classe dos hotéis oferecidos", explica ele.
Haverá também instalações médicas para atender a um novo tipo de turismo que o Uzbequistão vem tentando atrair: visitantes em busca de assistência médica barata, desde odontologia até cirurgias plásticas.
Esta área costumava ser a região administrativa de Bukhara, com escritórios governamentais e uma grande arena esportiva pública.
A demolição do estádio de esportes em 2024 gerou protestos da população – o que é raro no Uzbequistão, onde a dissidência pública é rapidamente silenciada. A Enter Engineering reagiu construindo três outras instalações esportivas nos limites da cidade.
O local é circundado por uma estrada, além da qual existem blocos de apartamentos residenciais cinzentos e semidilapidados, com vários espaços para negócios no andar térreo que estão desocupados.
Mesmo estando a uma curta caminhada dos locais turísticos e monumentos de Bukhara, eles parecem ficar a um mundo de distância da incessante atividade turística do centro da cidade.
"O Uzbequistão vive há anos um processo de esvaziamento do centro das suas cidades, que estão ficando sem habitantes", explica Gorshenina. "Estamos presenciando uma transformação das cidades em cidades-museus, feitas para os visitantes."
"Em Bukhara, você já tem essa 'zona turística', claramente separada do resto da cidade, onde vivem os moradores. Ela se tornou um museu a céu aberto."
Eu me reuni com um arquiteto uzbeque no seu escritório em Bukhara, que pede para não ser identificado nesta reportagem. "Todos os anos, cresce o número de turistas", ele conta.
"Sempre pensei em Bukhara como um organismo vivo e esse organismo está ficando muito fraco e frágil. Ela não deveria passar a ser uma cidade apenas para turistas, mas também para os seus moradores. Ela corre o risco de se tornar uma Veneza do deserto."
A Alerte Héritage se opõe firmemente ao projeto Eternal Bukhara.
Um dos motivos é porque, segundo a organização, os moradores locais não foram consultados sobre o uso do espaço. E também estão sendo perdidas importantes obras arquitetônicas da era soviética, como o edifício do governo, construído em 1987 e que foi a antiga sede regional do Partido Comunista. Ele foi derrubado no início de 2024.
O arquiteto uzbeque que entrevistei afirmou que o governo atual está repetindo os erros da era soviética.
"A União Soviética [1922-1991] destruiu grande parte do patrimônio e o substituiu por construções soviéticas porque queria deixar sua própria marca", explica ele. "Aquela tradição de demolições, infelizmente, ainda está no nosso sangue."
O projeto Eternal Bukhara não fica no centro histórico, classificado como Patrimônio Mundial da Unesco. Ele está na chamada "zona tampão", que ainda exige aprovação da Unesco para que possam ser feitas mudanças urbanas.
Consultado, um porta-voz da Unesco declarou que a entidade "monitora de perto" a situação.
"Esperamos que as autoridades cumpram com seus compromissos junto à Convenção Mundial do Patrimônio e não realizem nenhum projeto de demolição ou construção sem a avaliação prévia do Comitê do Patrimônio Mundial, em julho de 2025", destacou ele.
Mas as demolições no local do projeto Eternal Bukhara estão visivelmente em andamento e poucos edifícios ainda estão de pé.
Esta parece ser uma situação problemática para a Unesco, ainda mais considerando que a organização pretende realizar sua Conferência Geral deste ano no Uzbequistão. Seria a primeira vez em que a reunião anual seria realizada fora de Paris, na França, desde 1986.
Para o arquiteto entrevistado, "a Unesco é ineficiente e não tem princípios. O que ela fez, na verdade, pela Ásia Central, pelo Uzbequistão?"
Ele e a Alerte Héritage não se convenceram com os alertas enviados pela Unesco para a Enter Engineering. Mas Khaydarov garantiu que a empresa não irá iniciar nenhum trabalho de construção até receber a luz verde da Unesco.
Isso significa que eles ainda poderão esperar meses até que a construção possa ser iniciada.
"Não queremos prejudicar a imagem da cidade", declarou Khaydarov. "É uma questão de reputação. Mas nós fechamos esta área porque está na zona tampão e estamos confiantes de que iremos conseguir a aprovação da Unesco para continuar."
Ele também insistiu que os moradores locais apoiam seus planos, que ele descreve como "projeto social", não comercial. "Criaremos pelo menos 15 mil empregos neste local", promete ele.
A precipitada corrida do Uzbequistão para o mundo do turismo de massa poderá muito bem criar milhares de empregos e incentivar a economia do país. Mas existe o risco de destruir ou danificar o patrimônio mais antigo do país e os vestígios da sua história recente.
Basta andar pelos bazares cobertos de Bukhara — antes repletos de seda e artesanato uzbeque e agora invadidos por produtos importados, fabricados em massa — para imaginar como poderá ser o país daqui a alguns anos.
Muitos visitantes viajam de Samarcanda para Khiva, mas logo saem do caminho de terra batida para explorar a região. Aqui estão algumas sugestões:
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
Fonte: correiobraziliense
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