Em 7 de novembro de 2024, o capixaba Nicolas Campana, de 30 anos, se entregou às autoridades de imigração dos Estados Unidos na cidade de Laredo, no Texas.
Ele conta que havia acabado de concluir uma viagem de 13 dias, passando por Guatemala e México, até cruzar a fronteira americana pelo rio Grande.
O objetivo era conseguir uma autorização de asilo para iniciar uma nova vida nos Estados Unidos.
Naquele mesmo dia, Donald Trump foi declarado vencedor da eleição à Presidência.
Entre as principais promessas de campanha do republicano, estava a promessa de barrar a entrada de imigrantes ilegais nas fronteiras do país com o México, o que afetou diretamente os pedidos de asilo.
A estratégia de se entregar na fronteira com o México em busca do sonho americano ficou quase impossível depois disso.
O método, também conhecido como "cai-cai", é comum entre imigrantes de várias nacionalidades que imigram para os Estados Unidos.
Após ser detido no Texas, Nicolas passou 90 dias em três centros de detenção para imigrantes até ser deportado.
Chegou ao Brasil no avião que trouxe outros 110 compatriotas deportados, desembarcando no Aeroporto Internacional de Belo Horizonte (MG) em 7 de fevereiro.
Fez o trajeto de 12 horas entre a Louisiana (EUA) e Fortaleza (CE), sua primeira parada no Brasil, em um voo controlado pelas autoridades americanas, com algemas e correntes nos pés e nas mãos.
"A vitória do Trump já estava certa, mas a intenção é que o processo [de asilo] corresse antes de ele assumir", afirma Nicolas, que queria seguir até Boston (EUA), onde vive um primo, e trabalhar na construção civil.
Por meio do primo, ele conseguiu o contato de uma advogada que iria ajudar nos papéis para regularizar sua situação. Mas o plano do pedido de asilo falhou.
Diferentemente de outros imigrantes que se aventuram pela fronteira ao sul dos Estados Unidos com a ajuda de agentes clandestinos que organizam a travessia desde o país de origem, os chamados coiotes, o capixaba conta que empreendeu a viagem sozinho.
Nicolas diz que estudou o trajeto assistindo no YouTube a vídeos de brasileiros que ensinavam como chegar até lá e decidiu se aventurar sem ajuda prévia.
Se tudo corresse conforme o planejado, depois de ser detidos pelas autoridades, ele seria levado para um centro de detenção, onde apresentaria um pedido de asilo para oficiais da Justiça americana.
O intuito era receber a liberdade condicional, o que possibilitaria esperar, em solo americano por uma audiência com um juiz de imigração para tentar regularizar sua situação.
Além do relato dos próprios youtubers sobre casos de "cai-cai" bem-sucedidos, um amigo de Nicolas tinha conseguido asilo no país cerca de 30 dias antes de ele chegar, conta o capixaba.
Nicolas conta que deixou o trabalho com a família no cultivo de café em Vila Pavão (ES), uma cidade de quase 9 mil habitantes, largou a faculdade em análise de sistemas e pegou um voo até a Cidade da Guatemala.
Ao passar na alfândega para o México, ele diz que inventou uma história: "Vou pescar com meu amigo José".
Da cidade do México, comprou uma bicicleta para atravessar os postos de controle após descer dos ônibus.
Mas, já no norte do país, próximo aos Estados Unidos, diz que foi interpelado por um coiote.
Nicolas relata que foi colocado dentro de um carro e passou quatro dias preso nele, sofrendo ameaças: "Achei que ia morrer".
Depois, ele diz que foi liberado após pagar US$ 1,1 mil (R$ 6,4 mil) ao coiote e chegou até o outro lado da fronteira, no Texas.
"Mas só conheci os Estados Unidos de dentro da prisão", diz Nicolas, que, mesmo assim, não deixou de se impressionar com o que encontrou no país.
"Dentro do ônibus que levava de um presídio a outro, vi coisas que para nós são incomuns", conta à BBC News Brasil.
"Carros de luxo, que no Brasil são coisa de gente rica, para eles são acessíveis a qualquer trabalhador. Lá o dinheiro tem seu valor, as pessoas são bem pagas. É algo que eu desejo para o nosso país. Espero que um dia a gente possa chegar lá."
Nicolas diz que, nos centros de detenção, a comida era péssima, as celas sujas e com mofo e que os imigrantes eram tratados "igual cachorro".
"É o pior lugar que eu já passei na minha vida", diz Campana sobre as prisões.
Nos Estados Unidos, o asilo para imigrantes é regulado pela Lei de Refugiados, promulgada pela presidente democrata Jimmy Carter, em 1980.
O texto prevê o acolhimento de estrangeiros em perigo em seus países de origem e sem proteção dos respectivos governos.
Para isso, eles precisam provar para o Judiciário americano que estão sob "medo justificado".
Na prática, devem demonstrar que sofrem algum tipo de perseguição ou tortura no seu país de origem.
Até o início do novo governo Trump, esse pedido de asilo podia ser requisitado pelos imigrantes após a captura na entrada pela fronteira de forma irregular, mesmo que isso tenha ficado mais difícil nos últimos anos.
Em junho de 2024, o democrata Joe Biden impôs um dispositivo que barrava a concessão de asilo, exceto em casos "excepcionais", se o número de imigrantes cruzando a fronteira com o México ultrapassasse os 2,5 mil por mais de sete dias consecutivos.
O ato dificultou a estratégia do "cai-cai", mas, na prática, ainda era possível conseguir o asilo — ou pelo menos a liberdade condicional para aguardar uma audiência.
Mesmo com essas restrições, a possibilidade de proteção no país por meio do asilo "continuava intacta" até então, afirma o Conselho Americano de Imigração.
A situação mudou radicalmente com uma série de mudanças nas regras de imigração nos primeiros dias do governo Trump.
Em 20 de janeiro, quando Trump tomou posse, o governo americano declarou como "invasão" qualquer entrada de imigrantes pela fronteira ao sul do país, inclusive os requerentes de asilo.
Trump também tirou do ar o aplicativo CBP One, por meio do qual era possível solicitar uma audiência com os oficiais de imigração para análise de pedidos, inclusive os de asilo, ainda nos postos de controle.
Dois dias depois, o presidente baixou uma ordem executiva impedindo o recurso a dispositivo das leis de imigração a qualquer cidadão não americano envolvido em uma "invasão" pela fronteira com o México de continuar nos Estados Unidos, "inclusive aqueles relativos ao asilo".
"Com essas ordens executivas, o asilo, desta forma, está morto", disse o Conselho Americano de Imigração em um comunicado após analisar as mudanças decretadas por Trump, acrescentando que os oficiais da fronteira, com essas ordens, agora têm poder para determinar o destino dos requerentes de asilo — colocando em xeque o futuro da Lei de Refugiados.
Gabrielle Oliveira, professora de Educação, Imigração e Estudos Brasileiros na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ressalta que o pedido de asilo "sempre foi um processo super burocrático, com muitos momentos onde um veto pode acontecer".
"Mas, com Trump, esse programa de refugiados foi suspenso", explica Oliveira.
O Brasil, por ser uma democracia consolidada, é dificilmente visto pelos juízes de imigração americanos como um país em que o medo justificado seja comum, acrescenta a professora.
"Não é que não tenha problemas de violência no Brasil, ao mesmo tempo, o país não classifica da mesma maneira que outros, como Honduras e até a Venezuela", diz Oliveira.
A lei prevê o direito de esperar a audiência com um juiz sobre o pedido de asilo em solo americano.
De acordo com Oliveira, há 2 milhões de pessoas aguardando o processo, livres no país.
Dados divulgados pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos indicam 8,9 mil brasileiros tentaram asilo no país por esses meios no ano passado até outubro.
Desses, apenas 548 (cerca de 6%) foram aceitos em 2024. Os números mostram uma redução na concessão desse dispositivo a imigrantes brasileiros na comparação com 2023.
Naquele ano, também até outubro, foram 7,7 mil pedidos — com 10% de asilos concedidos (762).
No entanto, a professora aponta que a retirada de juízes em cortes de imigração por Trump fazem a fila ficar ainda maior, complicando todo o trâmite.
"Todas essas pessoas, até as que estão livres nos Estados Unidos aguardando o asilo, podem ser deportadas", diz Oliveira.
O casal de brasileiros Pedro e Camila Torres, de 26 e 27 anos, respectivamente, sabia que precisavam de uma justificativa crível para dar entrada no pedido de asilo em solo americano.
Ao sair do Brasil, eles sabiam de pelo menos três conhecidos que haviam entrado nos Estados Unidos como "cai-cai" e ficado por lá, em liberdade, enquanto esperavam asilo.
Depois de terem o visto para entrar no país como turistas negado, eles abriram mão dos móveis recém-comprados da casa onde moravam de aluguel em Rondonópolis (MT) e contrataram um coiote por R$ 50 mil com o plano de se entregarem na fronteira.
"Cama nova, guarda-roupas, lava e seca, moto. Vendemos tudo", conta Pedro.
Formado em direito, ele conta que largou o emprego em uma transportadora. Ela é fisioterapeuta e deixou para trás o consultório.
A promessa de um trabalho na empresa de construção civil de um primo de Pedro, em Atlanta, capital da Georgia, falou mais alto.
O casal relata que chegou a El Salvador em 10 de dezembro do ano passado, passando por maus bocados na Guatemala e no México.
"A pior parte foi quando tivemos que atravessar o México com mais 15 pessoas na traseira de uma caminhonete, escondidos", lembra Pedro.
Depois de uma curta detenção no país vizinho dos Estados Unidos, eles dizem que conseguiram finalmente entrar no país pelo Arizona, onde se entregaram às autoridades.
"Para você receber um asilo, infelizmente tem que mentir, falar que foi mal tratado em seu país, e isso tem que envolver agentes do governo, como policiais", diz Pedro.
Para embasar o pedido de asilo, eles se basearam em uma história que conheciam sobre um abuso sofrido por uma pessoa próxima.
Chegaram a contar o caso, por meio de tradutor, em audiências com um oficial de asilo.
"É ele quem faz o resumo para passar para o juiz. É o que ele acha que deve colocar lá, mesmo que tenhamos contado a história, para o juiz ele pode ter passado de outra forma", conta Pedro.
Na audiência com o juiz, Camila afirma que mal conseguia entender o que era dito porque o tradutor falava português de Portugal.
Eles dizem que ficaram 38 dias nas prisões de imigrantes, sem comunicação com os guardas, com pouca comida e passando frio.
Como Nicolas Campana, só conheceram os Estados Unidos enquanto estavam sob custódia.
"Na detenção feminina em que fiquei, guardas do sexo masculino passavam e podiam ver a gente usando o vaso sanitário, trocando de roupa", conta Camila.
"Um deles chegou a pedir o meu Instagram. Para mim, isso é abuso."
Ao contrário dos outros brasileiros deportados no voo que chegou ao Brasil em 7 de fevereiro, os guardas disseram não ter encontrado os objetos pessoais de Pedro que estavam com ele quando foi detido para devolvê-los.
Acorrentado, ele viajou sem o celular, a certidão de nascimento e os cartões de crédito e débito, que ele diz que foram entregues aos guardas ainda no Arizona.
Ficaram para trás também duas alianças e uma corrente de ouro. Eles avaliam em R$ 10 mil o total dos pertences que não puderam trazer de volta.
A BBC News Brasil questionou a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil sobre as denúncias de Pedro, Camila e Nicolas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Ao chegar em Confins (MG), o casal seguiu com mais dez famílias de deportados para a acomodação aos repatriados no Sesc Venda Nova, oferecida pela Fecomércio-MG.
Na segunda-feira (10/2) saíram de BH numa viagem de ônibus de dois dias até a cidade de Novo Progresso (PA), onde vive a mãe de Pedro. As passagens foram cedidas pela Prefeitura da cidade.
"Vendemos tudo para tentar o sonho americano e agora vamos ter que recomeçar. Não vai ser fácil. Mas agora vamos dar muito mais valor à nossa casa", diz Pedro.
"Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida confortável. Começar do zero vai ser difícil. Mas estamos vivos e saudáveis."
Os dois têm planos de fazer turismo na Europa e no Canadá, mas dizem que os Estados Unidos agora saíram completamente do roteiro.
"É o pesadelo americano, não quero mais", conclui Camila.
Já Nicolas confessa que ainda não desistiu: "Vou tentar mais uma vez, com visto, daqui do Brasil. Se não conseguir, vou para a Europa. Mas isso é plano para daqui um, dois anos".
De Belo Horizonte, Campana pegou um ônibus para Colatina (ES) no domingo (9/2), para visitar a irmã e uma das filhas, antes de seguir para Vila Pavão.
"Agora, é tentar esfriar a cabeça um pouco e valorizar aqui, trabalhando com meu pai, na batalha de sempre."
Fonte: correiobraziliense
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