25 de Fevereiro de 2025

Dos Silva aos Moreira Salles: de onde vieram as tradições de dar sobrenomes no Brasil


Sobrenomes contam histórias sobre origens, lugares e tradições. Não só na etimologia, mas até na forma como são transmitidos (ou não) de geração em geração.

Os nomes completos dos diretores indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025 ajudam a exemplificar isso. São cinco homens, de continentes variados.

Estão na lista dos indicados o francês Jacques Paul Jean Audiard (Emilia Pérez), o letão Gints Zilbalodis (Flow), o sueco Magnus von Horn (A Garota da Agulha, que representa a Dinamarca na lista de indicados), o iraniano Mohammad Rasoulof (A Semente do Fruto Sagrado, representando a Alemanha) e o brasileiro Walter Moreira Salles Júnior (Ainda Estou Aqui).

Walter Salles, como o brasileiro é mais conhecido, é o único com sobrenome composto. Ele é membro de uma das famílias mais ricas do Brasil, os Moreira Salles, que fizeram fortuna nos setores bancário e industrial.

Os Moreira Salles, assim como outros sobrenomes conhecidos — Almeida Prado, Magalhães Pinto, Monteiro de Carvalho, Souza Aranha, Cavalcanti de Albuquerque... — reforçam a percepção comum de que sobrenomes duplos estão associados à tradição e à riqueza.

"Sociedades atualmente democráticas foram, na maior parte de sua constituição histórica, sociedades aristocráticas e monárquicas", diz o historiador, genealogista e advogado especializado em ancestralidade Bruno Antunes de Cerqueira.

"As heranças dos tempos ancestrais estão por toda parte, e uma das mais visíveis é a aplicação de nomes duplos ou triplos para algumas famílias."

Segundo a historiadora e genealogista Rosana Coelho de Alvarenga e Melo, pesquisadora do Laboratório de História de Família da Universidade Federal de Viçosa (UFV), sobrenomes compostos geralmente refletem uma linhagem, herança nobre ou tradição familiar.

"Na Europa, os sobrenomes compostos frequentemente indicavam títulos de nobreza, propriedades ou alianças entre famílias, como Bragança e Bourbon e Medici-Riccardi", explica.

Mas, em Portugal e na Espanha, com o tempo, o hábito se espalhou para outras camadas da população: não era preciso ser nobre ou rico para ter mais de um sobrenome, porque isso surgia ao unir as linhagens materna e paterna.

Virou uma tradição que dura até hoje e diferencia esses países, e suas antigas colônias, como o Brasil, em relação à tradição cultural que vigora em outros lugares. É um choque cultural que às vezes vira até briga na Justiça.

Em 2016, uma brasileira, casada com um italiano e morando em Gênova, lutou para conseguir dar o sobrenome de sua família ao filho, também italiano.

Ela conseguiu vencer uma lei do Império Romano, que impunha uma tradição mantida na Itália até hoje: os filhos herdam o sobrenome só do pai, não da mãe.

Nos últimos anos, alguns países — entre eles, a própria Itália — mudaram a legislação para deixar de favorecer o sobrenome paterno.

A ideia é deixar as pessoas mais livres para determinar como batizar os próprios filhos.

Os sobrenomes surgiram, basicamente, da necessidade de diferenciar as pessoas.

Há inúmeras tradições que orientam a escolha e reprodução de sobrenomes ao longo da história e ao redor do mundo, mas vamos focar aqui mais na Europa e Américas a partir da Idade Média — embora, mesmo nesse universo, haja exceções.

indígenas, como o povo bororo, em que a denominação genealógica ocorre apenas pela parte materna, diferente da predominância da linhagem paterna que vingou nesses dois continentes.

No início da Idade Média, na Europa, as pessoas tinham apenas o nome próprio, muitas vezes seguido de um qualificativo associado a uma característica física ou ocupação, explica Rosana Coelho de Alvarenga e Melo.

É parecido com a forma como muitos candidatos preferem se apresentar aos eleitores no Brasil. Não usam o sobrenome para se promover, mas sim aspectos pelos quais são conhecidos socialmente.

Por isso, vemos candidatos com nomes do tipo Nete do Hortifrúti, Paulinho Chevette, Nogueira do Sacolé ou Dudu Ruivinho.

Foi só entre os séculos 11 e 13 que os sobrenomes começaram a se firmar.

Locais de origem e patronímico (derivado do nome do pai) também serviam como base.

Assim, surgiram sobrenomes, em diversos idiomas, como Smith ou Schmidt (ferreiro), Taylor (alfaiate), Baker (padeiro), Müller (moleiro), Blanco (branco), Long (alto) ou Roux (ruivo).

Nos patronímicos em português, "es" indica descendência, como em Gonçalves ("filho de Gonçalo"). Em espanhol, é o mesmo: Martínez é "filho de Martín".

Em inglês, Johnson é "filho de John". Em russo, Ivanov é "filho de Ivan". Os prefixos "ibn" e "ben", do árabe, e "Mac" ou "Mc", do gaélico escocês e do irlandês, têm a mesma função.

"O patronímico era uma maneira de identificar parentesco em sociedades em que as famílias eram organizadas em clãs ou linhagens", explica Alvarenga e Melo.

"Com o tempo, muitos desses nomes se fixaram como sobrenomes permanentes, mesmo quando o significado original deixou de ser levado em conta."

Alan Borges, vice-presidente da Associação de Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro (Arpen-RJ), destaca que o costume "impera" na atribuição de nomes.

"Cada país tem sua tradição, e elas não têm muita lógica", diz Borges.

Essas são apenas algumas das mais antigas maneiras de sobrenomeação.

O genealogista Gilberto de Abreu Sodré Carvalho, em um artigo publicado na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia (Asbrap), listou 60 tipos na tradição luso-brasileira.

Entre eles, estão evidência geográfica (Ribeiro, Costa, Lago), designação de árvores (Carvalho, Oliveira, Pinheiro) e de animais (Leitão, Lobo, Carneiro) e a "invenção pura e simples".

É o que acontece, por exemplo, quando um pai resolve encaixar um "Kennedy" ao registrar um filho, mesmo que ele ou a mãe do bebê não tenham esse sobrenome.

Entre os nobres, os sobrenomes muitas vezes indicavam títulos e posses de terras. Essa relação com os territórios ficava explícita com as preposições "de", "da" e afins (ou "von" e "van" nas línguas germânicas).

E onde Silva se encaixa nesta história?

O sobrenome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é o mais popular do Brasil de acordo com a Arpen, mas tem uma origem controversa. É o que diz o "Dicionário das Famílias Brasileiras", de Carlos Eduardo Barata e Antonio Henrique da Cunha Bueno.

Segundo a publicação, a origem de Silva viria dos tempos romanos, usada para designar as pessoas que vinham de regiões de florestas (que, em latim, é "silva").

O sobrenome explodiu em popularidade no Brasil colônia com os portugueses que vinham para o país e, em busca de anonimato, adotavam o Silva.

Além disso, muitos escravizados recebiam esse sobrenome de seus proprietários, geralmente com a preposição "da", como indicativo de posse.

Alvarenga e Melo lembra que até mesmo a hereditariedade, algo central na definição de sobrenomes hoje, não era uma regra.

"Um homem chamado João Ferreira podia ter um filho Pedro da Silva, por exemplo. As mulheres, muitas vezes, recebiam sobrenomes de devoção, como 'De Jesus' ou 'Da Anunciação'", diz.

No século 17 em Portugal, irmãos com sobrenomes diferentes eram quase a regra. Entretanto, o filho herdeiro, em geral o primogênito, recebia o sobrenome do pai.

Segundo um artigo de Nuno Gonçalo Monteiro, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 83% dos casamentos com dois ou mais filhos, os pais escolhiam sobrenomes diferentes para cada um.

"Pelo menos as filhas usavam apelidos diferentes dos filhos, quase invariavelmente. Iam buscá-los à mãe, a uma avó… não havia regra fixa", escreveu o pesquisador.

Em paralelo a esse desprendimento da hereditariedade, porém, começou a surgir na elite a transmissão dos nomes do pai e da mãe aos filhos.

Famílias aristocráticas, burguesas e proprietárias tinham mais interesse em preservar direitos de propriedade e identidade familiar.

No auge da Inquisição, nos séculos 16 e 17, o surgimento dos sobrenomes duplos facilitava a investigação dos antepassados de alguém suspeito de ser "impuro" na perspectiva católica — ou seja, que tivesse judeus ou muçulmanos na família.

Também a partir do batismo e do registro de fiéis, a Igreja Católica teve papel importante na padronização e disseminação de sobrenomes.

Passar adiante dois nomes, em vez de só um, era uma maneira de reforçar o controle da Igreja sobre as pessoas, explicou o genealogista espanhol Antonio Alfaro de Prato à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Ou seja, a junção de sobrenomes de pai e mãe não tinha nada a ver com a busca por uma sociedade com mais igualdade de gênero.

Além disso, carregar o sobrenome da mãe facilitava a identificação de alguém no dia a dia, devido à relativa baixa variedade de nomes no idioma espanhol.

"Então, o filho de Juan de Cadaval com Maria de Gusman se chamaria José de Cadaval y Gusman", diz Cerqueira.

Assim mesmo, com o sobrenome do pai antes do da mãe.

Como Portugal e Espanha formaram um só reino por 60 anos (1580-1640), a União Ibérica, muitos desses costumes se espalharam por toda a península e se consolidaram até o século 19, quando a situação mudou por completo.

A partir do século 18, firmou-se na sociedade mais ampla o uso de sobrenomes hereditários em todos os filhos.

"Os primeiros sobrenomes que se usavam eram os da casa, em princípio os do pai, e só depois se acrescentavam, eventualmente, os da mãe", diz o artigo de Nuno Gonçalo Monteiro.

Segundo um artigo da historiadora da Universidade de Cambridge Amy Erickson, especializada em economia de gênero e pesquisadora das antigas estruturas sociais da Inglaterra, foi lá que surgiu o hábito da mulher adotar o nome do marido. Era tudo questão de posse.

No século 14, advogados ingleses criaram uma regra dizendo que, quando uma mulher se casava, salvo algumas exceções, todos os seus bens passariam a ser do marido. Para simbolizar o acordo, ela adotava o sobrenome dele.

"Por 500 anos, a Inglaterra foi o único país europeu em que os maridos ganhavam controle quase total sobre os bens das esposas e onde as mulheres trocavam seu sobrenome de batismo pelo do marido ao se casarem", explica Erickson.

O hábito inglês se espalhou, com o tempo, por outras sociedades patriarcais da Europa e, de lá, para as colônias.

No Brasil, o costume de adotar o sobrenome do marido acabou virando lei com o Código Civil de 1916. Por mais de 60 anos, o que antes era uma tradição importada se tornou mandatório.

Em 1977, com a Lei do Divórcio, as regras mudaram. Mulheres só adotariam o sobrenome do marido se quisessem.

A grande transformação seguinte veio em 2002, com o novo Código Civil. Desde então, maridos podem adotar o nome das esposas. Na prática, porém, isso não pegou.

De acordo com números divulgados pela Arpen, em apenas 0,7% dos casamentos realizados em 2022 o marido adotou o nome da esposa. O ano em que ocorreu maior adesão foi 2005, com 2%.

Já a mudança de sobrenome de ambos os cônjuges ocorreu em 7,3% dos casamentos. O pico foi em 2014, quando 13,8% dos matrimônios tiveram dupla mudança de nome.

A maior novidade nos últimos tempos é, de fato, a queda da adoção do nome do marido pela esposa. O número de casamentos em que a mulher mudou de sobrenome caiu 30% entre 2002 e 2022.

Já a não mudança, ou seja, ambas as partes mantendo seus nomes, teve aumento ainda maior, de 41,5%, segundo a Arpen. Para a associação, isso é um símbolo de uma sociedade mais igualitária e moderna.

É uma luta que não é nova. Ela data desde praticamente a disseminação do hábito de a mulher adotar o sobrenome do marido ao casar, no século 19.

Mulheres que seguiam o sansimonismo, doutrina socialista utópica em voga na época, recusavam-se a usar publicamente os sobrenomes dos seus maridos.

A ideia é que isso diminuiria o poder masculino na sociedade e as tornaria mais responsáveis por suas próprias ideias e ações.

Segundo um artigo da historiadora francesa Florence Rochefort, a proposta nunca vingou de forma predominante. O patriarcalismo nos sobrenomes franceses foi soberano até o século 21.

Um exemplo é a família de Jacques Audiard, o principal concorrente de Walter Salles na briga pelo Oscar. Do seu casamento com a roteirista Marion Vernoux, um dos três filhos seguiu carreira no cinema.

A atriz Jeanne Audiard não tem o sobrenome da mãe. Somente em 2005 a lei francesa encerrou a transmissão compulsória do sobrenome do pai aos filhos. Hoje, eles podem ter do pai, da mãe ou de ambos, em qualquer ordem.

É a realidade do Brasil desde 1973. A Lei de Registros Públicos diz que filhos podem ter um ou todos os sobrenomes do pai ou da mãe, na ordem que eles quiserem.

Mas antes, por volta do século 19, o costume inglês da mulher mudar de nome ao se casar assentou-se em Portugal e, consequentemente, no Brasil.

Para os filhos, o formato mais difundido colocava primeiro o sobrenome da mãe, depois o do pai — o inverso do que se consolidou na Espanha e em suas ex-colônias.

Foi também no século 19 que a Igreja deixou de ser a responsável pelos registros civis, que passaram a ser um assunto do governo.

Surgiram, então, algumas das principais regras, usadas até hoje.

"O registro civil, em 1888, e a separação entre Igreja e Estado, em 1889, obrigou os cartórios a darem os nomes de família às meninas", explica Cerqueira.

Ele conta que, em sua própria árvore genealógica, há exemplos de mulheres que não herdaram o nome do pai, pois seguiam uma antiga tradição em que meninas ganhavam o nome completo de uma antepassada.

"Minha avó paterna se chamava Maria Amelia da Conceição, porque a mãe dela era Maria Amelia da Conceição e a mãe da mãe, Amelia Maria da Conceição."

No Brasil, pessoas escravizadas não tinham sobrenome. Se recebiam algum, era atribuído pelos seus senhores, explica Alvarenga e Melo.

"Após a abolição, em 1888, muitos adotaram sobrenomes religiosos ou de ex-donos."

Costumes como esses formavam uma realidade que complica, e muito, o trabalho de genealogistas.

Outra característica que atrapalha é que, até o início do século 20, especialmente entre as classes populares, não era comum no país registrar o sobrenome de uma criança ao nascer.

Alvarenga e Melo cita como exemplo a avó, nascida em 1903. Ao registrá-la, seus pais não lhe deram um nome completo. A certidão de nascimento dizia apenas "Adelaide - primeira do nome".

Isso só mudou em 1940, quando uma lei impôs que bebês devem receber um sobrenome na certidão.

Até então, as pessoas podiam definir seu próprio nome completo ao chegar à idade adulta.

Sobrenomes nascem, morrem e se transformam com o tempo. Isso depende, e muito, da vida das pessoas que carregam esses nomes.

O grande jurista, político e diplomata baiano Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923), por exemplo, foi um personagem tão grande da história brasileira que "Ruy Barbosa" acabou virando um novo sobrenome, usado por seus descendentes.

A atriz Marina Souza Ruy Barbosa é tetraneta da Águia de Haia, como ele era chamado.

"Os pais sempre querem garantir abertura de portas para os filhos. Um sobrenome importante identifica e qualifica o sucessor", resume Borges, da Arpen-RJ.

É o caso dos Moreira Salles. Walter, o cineasta multipremiado, não ganhou o Moreira da mãe e o Salles do pai, como poderia acontecer em muitas outras famílias.

Ambos vieram de seu pai: Walther Moreira Salles, o homem que fez do Unibanco uma das maiores instituições financeiras do Brasil do século 20.

Na biografia dele, Walther Moreira Salles: O banqueiro-embaixador e a construção do Brasil, o jornalista Luís Nassif conta a origem do sobrenome.

O pai do Walther banqueiro foi João Moreira Salles, grande produtor de café e fundador do banco Moreira Salles, antecessor do Unibanco (hoje Itaú Unibanco).

A mãe de João, por sua vez, era Ana Moreira, que se casou com José Amâncio de Salles e virou Ana Moreira Salles. Ou seja, foi João (pai do Walther banqueiro e avô do Walter cineasta) que criou a dinastia Moreira Salles.

Isso porque, quando nasceu, em Cambuí (MG), em 1888, João não era um herdeiro de banco importante, mas um filho de pequenos agricultores.

Como tantos brasileiros antes e depois dele, herdou o sobrenome da mãe (Moreira) e o do pai (Salles).

Sua trajetória de sucesso uniu ambos e criou um novo nome, composto — que, agora, chega novamente ao tapete vermelho do Oscar com Ainda Estou Aqui, após indicações por Central do Brasil.

Fonte: correiobraziliense

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