Tudo começou com a maçã (que talvez fosse um figo ou uma romã, segundo relatos antigos e anteriores ao Renascimento). Quando Eva provou o “fruto proibido” da Árvore do Conhecimento e o ofereceu a Adão, causando a expulsão do casal do Jardim do Éden, ela se tornou a primeira protagonista de uma história milenar que associa mulheres a plantas “Venenosas, Nocivas e Suspeitas”. Este é o título da nova exposição que Giselle Beiguelman apresenta, de 6 de novembro de 2024 a 20 de abril de 2025, na Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp, na Av. Paulista. Com curadoria de Eder Chiodetto, a mostra gratuita traz cerca de 30 trabalhos inéditos da artista, que utilizou inteligência artificial (IA) para desenvolvê-los. “Nos últimos três anos, tenho trabalhado extensivamente com IA em meus projetos artísticos. E tem sido uma tremenda experiência de aprendizado. No momento, me dedico à exploração de modelos de IA que utilizam linguagem natural para gerar imagens a partir de textos e transformar imagens em um dinâmico processo de tradução quase intersemiótica. As obras visuais apresentadas nesta mostra foram criadas com esse tipo de tecnologia”, explica Beiguelman. Em “Venenosas, Nocivas e Suspeitas”, a artista relaciona plantas que foram proibidas ou demonizadas pelo colonialismo – por razões que vão do seu uso em práticas rituais a poderes afrodisíacos ou alucinógenos – a mulheres que foram apagadas da história da arte e da ciência.
As beladonas aparecem em muitas histórias de bruxaria e há quem acredite que as mandrágoras gritam ao ser arrancadas da terra, ecoando vozes de feiticeiras que matam quem as escuta. A papoula dá origem ao ópio, que, por muito tempo, foi utilizado para o “tratamento” de mulheres “histéricas”. Já entre as plantas carnívoras, a armadilha-de-Vênus (Dionaea muscipula), uma das mais conhecidas, tem suas folhas comparadas ao órgão genital feminino e à imagem da “femme fatale”, que usa sua atratividade para enganar e prender suas “vítimas”. Pau-brasil, cannabis e cogumelos são outras plantas que surgem em vídeos criados por Beiguelman, que abasteceu a IA com referências da arte e estética de diversas botanistas que, no seu tempo, não tiveram o reconhecimento de seu trabalho, como Sarah Anne Drake (1803-1857), responsável pelas ilustrações do livro “Orchidaceae Of Mexico And Guatemala” (1837-1843), de James Batemane.
A artista também homenageia naturalistas do século XVII ao XIX, que, apesar de terem feito importantes contribuições à ciência e às artes, nunca receberam os devidos créditos. Com a ajuda da inteligência artificial, ela recriou retratos dessas mulheres, que surgem em meio a plantas e flores. Beiguelman conta que precisou “negociar” com a IA para que as homenageadas chegassem à provável aparência que tinham na idade em que morreram, uma vez que a tecnologia tem dificuldade de criar imagens de mulheres mais velhas, com rugas e marcas de expressão. “Em suas experimentações, a artista gerou imagens como se tivesse uma câmera mágica com o poder de “fotografar” o passado e, assim, fazer reparos em histórias eclipsadas por preconceitos e mitos infundados” explica Eder Chiodetto, curador da exposição.
Entre as retratadas estão nomes como o da brasileira Maria Bandeira (1902-1992), primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que estudou em Sorbonne e coletou um significativo número de espécimes de plantas, fungos e líquens. Maria Graham (1785-1842), naturalista e autora inglesa que viajou para países como Índia, Itália, Chile e Brasil, tendo ilustrado mais de 250 espécimes da flora brasileira. Maria Sybilla Meriam (1647-1717), pesquisadora alemã que publicou um livro sobre insetos e plantas no Suriname após uma expedição científica autofinanciada. Marianne North (1830-1890), naturalista e ilustradora inglesa, que participou de diversas expedições científicas, inclusive no Brasil, para descrever plantas em seu ambiente natural, tendo ilustrado 727 gêneros vegetais e despertando o interesse de vários cientistas e naturalistas, como Charles Darwin.
Beiguelman apresenta ainda impressões de “plantas ficcionais”, feitas também a partir de IA, com inspiração nas ilustrações dessas e de outras mulheres, e cria dentro da Galeria de Fotos da Fiesp um jardim de plantas naturais e artificiais.“Busco não apenas resgatar essas mulheres e o seu trabalho, que foram esquecidos, mas também provocar uma reflexão crítica sobre como interpretamos e interagimos com a natureza. Ao transformar digitalmente plantas historicamente marginalizadas em entidades visuais complexas, procuro revelar camadas de significado que se acumularam em torno delas ao longo dos séculos. O objetivo é desconstruir os mitos e preconceitos enraizados que ainda hoje influenciam nossa percepção do mundo e da tecnologia”, diz a artista.
A gerente de Cultura do SESI-SP, Débora Viana, considera importante a realização de mostras artísticas que levam à reflexão e que dialoguem com o momento atual da sociedade. “Reiteramos o compromisso da nossa instituição em ofertar um ambiente cultural e artístico, proporcionando ao público projetos de qualidade e que promovam e incentivem a reflexão. A exposição ‘Venenosas, Nocivas e Suspeitas’ é uma oportunidade para entendermos como a IA vem sendo utilizada por artistas na produção de seus trabalhos, bem como dar oportunidade às crianças e jovens de conhecerem sobre plantas consideradas pelo colonialismo como perigosas ou até proibidas, e sobre importantes mulheres que foram apagadas da ciência e da história. No SESI-SP, concebemos e executamos projetos em uma ampla gama de áreas, convidando o público a mergulhar de cabeça no universo do conhecimento e da expressão artística, gratuitamente. Promover a cultura é papel fundamental para a construção de uma sociedade mais inovadora e crítica”.
SOBRE A ARTISTA
Giselle Beiguelman é artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Suas obras artísticas integram acervos de museus no Brasil e no exterior, como ZKM (Alemanha), Jewish Museum Berlin, MAC-USP, IMS e Pinacoteca de São Paulo. Em seus projetos recentes investiga a construção do imaginário colonialista das artes e das ciências com recursos de Inteligência Artificial, entre os quais destaca-se “Botannica Tirannica”, exposta no Brasil e no exterior, incluindo-se Bienal de Karachi (Paquistão), Museu Sartorio (Itália) e Koffler Arts (Toronto), entre outros. É coordenadora do Projeto Temático Fapesp Acervos Digitais e Pesquisa: arte, arquitetura, design e tecnologia e autora de diversos livros, entre eles “Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera” (UBU Editora, 202) e mais de uma centena de artigos sobre arte e cultura digital. Recebeu vários prêmios nacionais e internacionais.
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