No mesmo dia em que os Estados Unidos deram um passo histórico sobre a questão armamentista no país, o país também retrocedeu quase 50 anos na pauta saúde da mulher ao acabar com a legalização do aborto. As decisões, tomadas pela Suprema Corte, refletem o atual momento da sociedade norte-americana, que se vê diante de um terrorismo interno causado pela violência armada no país e a herança deixada pelo Trumpismo, que faz com que a extrema-direita e os conservadores ganhem espaço e traz à tona pautas que já estavam pacificadas. Para o doutor em relações internacionais Igor Lucena, mesmo o caso Roe versus Wade – decisão de 22 de janeiro de 1973 que garantiu o direito ao aborto – não sendo uma lei nos EUA, o fim da legalização é um retrocesso porque a maioria das nações desenvolvidas já permitem a interrupção da gravidez não só no caso do estupro. “Vejo como uma reação conservadora, até porque não há hoje um grande aspecto que faça isso ser positivo na vida dos americanos”, disse à Jovem Pan. Bruna Ferrari, doutora em Ciência Política, endossa o argumento e acrescenta que a decisão deve causar impactos na saúde pública dos americanos.
“Isso é uma consequência direta de qualquer criminalização ou restrição ao aborto”, diz Ferrari. Para a especialista, a decisão gera uma crise de saúde pública por várias razões. A primeira delas é o fato de as mulheres precisarem comprar pílulas abortivas por meio de um traficante ou mercado ilegal, o que faz com que não se possa ter um controle se essa substância está chegando pura e se o remédio foi produzido dentro dos padrões de qualidade. “É uma crise que afeta mulheres pobres. As ricas vão conseguir ter acesso a uma clínica privada ou viajar para um lugar onde é permitido”, explica. “É um retrocesso imenso para as mulheres deste país”, acrescenta, destacando que a decisão foi tomada pela Corte sem nenhum tipo de consulta pública.
Uma pesquisa de opinião feita pela ABC News/Washigton Post mostra que a maioria dos norte-americanos apoia a defesa do caso Roe versus Wade. Os resultados mostraram que 58% acreditam que a interrupção da gravidez deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos; 54% dizem que o tribunal deve apoiar Roe, em comparação com 28% que dizem que a decisão deve ser anulada. Sete em cada 10 pessoas que participaram da pesquisa defendem que a decisão de fazer ou não um aborto deve ser tomada pela gestante e seu médico. Para Lucena e Ferrari, mais que um retrocesso, o fim a legalização do aborto interfere nas conquistas femininas dos últimos anos. “Mulheres vêm perdendo direito desde o governo de Donald Trump”, relembra a doutora em Ciência Política. Para ela, isso abre brecha para ataques aos direitos de outras minorias.
Apesar da polêmica, as decisões da Suprema Corte americana podem não parar no direito ao aborto. Na exposição de seu voto no julgamento do dia 24 de junho, o ministro Clarence Thomas expôs sua vontade de rever outras questões. Segundo ele, temas como direitos a contracepção, relações sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo e casamento entre a comunidade LGBTQIA+ também precisam ter fim. Assim como a do aborto, essas decisões não são protegidas pela cláusula que garante o devido processo prevista na 14ª Emenda à Constituição. Com isso, os casos Griswold versus Connecticut, que garantiu à pessoas do mesmo sexo casadas tivesse direito à contracepção; Lawrence versus Texas, lei que legaliza atividades sexuais entre pessoas do mesmo sexo em todo o país e Obergefell versus Hodges, que possibilita o casamento de pessoas aos casais LGBTs, podem ser os próximos a serem revertidos pelo tribunal. Na segunda-feira, 27, a Suprema Corte do Estado de Nova York já revogou outro direito: a lei que possibilitava que imigrantes votassem em eleições locais, sob o argumento de que essa previsão viola a Constituição. A medida, aprovada em dezembro de 2021, ainda não estava em vigor – o dispositivo só passaria a valer em janeiro do próximo ano.
Diante desse cenário, Bruna Ferrari projeta um futuro no qual a sociedade norte-americana estará cada vez mais prejudicada, uma vez que o país tem “uma Corte que é conservadora e as eleições de meio de mandato não parecem que vão mudar [essa configuração]”. Para ela, os últimos acontecimentos têm relação com o “legado ingrato do Trumpismo”, acrescentando que essas pessoas que estão no poder “vão continuar muito tempo”. Igor Lucena, por sua vez, aponta um nítido retrocesso. “A sociedade americana sempre foi pautada pelos direitos individuais; quando falamos da revogação do aborto, parece que o direito coletivo se sobrepõe aos individuais, o que vai contra os direitos americanos”, analisa. Para ele, “essa situação mostra uma inversão de valores causada pela polarização politica”. O especialista também aponta que o movimento causado por Donald Trump “foi muito radical, a ponto de eliminar visões históricas”. É por isso, em sua avaliação, que questões polêmicas voltaram à ordem do dia – entre elas está a discussão sobre o porte de arma em um país assolado por uma série de tiroteios que resultam em tragédias.
Além de dar fim a legalização do aborto, em um ato histórico, o presidente Joe Biden assinou a lei que visa estabelecer a regulamentação das armas de fogo, a mais importante em quase 30 anos. Para o professor de Relações Internacionais Orion Noda, mesmo que a norma tenha sido oficializada abaixo das aspirações do mandatário, trata-se de um “avanço que pouca gente esperava, porque a questão de armamento faz parte da cultura estadunidense”. O projeto aprovado pelo Congresso com apoio de congressistas republicanos, introduz novas restrições ao porte e compra de armas — sendo a maior delas a checagem de antecedentes criminais — e destina bilhões de dólares para saúde mental e segurança escolar. Para Noda, esse estímulo em dinheiro “é uma forma de fazer com que esses estados menos propensos a votar adotem essa lei”. O docente destaca que a reação do país ocorreu na esteira do aumento dos casos de tiroteio em massa. Segundo o Gun Violence Archive, um grupo de pesquisa que cataloga todos os incidentes de violência armada nos Estados Unidos, até o dia 28 de junho houve 293 tiroteios em massa americanos em 35 estados diferentes.
There have been 293 American mass shootings in 35 different states (and Washington D.C.) in the 179 days of 2022.https://t.co/CTud80aRaB pic.twitter.com/0ZdFMDR6TI
— The Gun Violence Archive (@GunDeaths) June 29, 2022
Apesar de ter perdido um pouco de força nos últimos anos, os Estados Unidos ainda são um país influente, e o que acontece lá pode impactar diretamente na decisão de outros países. Os especialistas divergem sobre o impacto das decisões do país para a comunidade internacional. Para Lucena, é de pouca influência porque “a maioria já tem pontos extremamente pacificados sobre ter armas”. Ele até cita o exemplo do Brasil e diz que, apesar dessas discussões estarem presentes, o que aconteceu lá não vai impactar aqui. “Acho que aqui não vai ter nenhuma mudança”, resume. Para o doutor em relações internacionais, como não se trata de decisões em que a maioria da sociedade apoia, não haverá uma campanha “propagandista porque no próprio país há conflitos sobre essas situações”.
Bruna Ferreira discorda. Para a cientista política, as decisões nos Estados podem causar efeitos em outros países, principalmente nos ocidentais. “Os EUA são um farol no mundo sobre sistema democrático”, diz. “Essas decisões podem não influenciar diretamente, mas dão força para o crescimento de grupos conservadores”, acrescenta. Ela afirma que o Brasil pode ser um dos mais afetados. “Sabemos a influência que a política norte-americana tem no governo atual e já conseguimos ver Bolsonaro fazendo uso eleitoral dessa decisão norte-americana”. Ferrari cita a cartilha lançada pelo Ministério da Saúde que afirma ser crime todo tipo de aborto. Em entrevista à Fox News, Jair Bolsonaro disse ter gostado da mudança na legislação dos EUA. “Quando a Suprema Corte norte-americana mudou a lei sobre o aborto, a esquerda no Brasil não gostou. Nós gostamos”, declarou.