Em 27 de janeiro de 2013, Gabriel Rodavoschi Barros, hoje com 27 anos, resolveu ir à mesma boate na qual havia se divertido um dia antes. Recém-ingressado no curso de jornalismo, ele não era afeito a festas, mas se entusiasmara com as amizades construídas na véspera. A casa noturna é a Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde um incêndio tirou a vida de 242 pessoas naquela trágica noite de janeiro. Gabriel é um dos sobreviventes. Em depoimento à Jovem Pan, ele conta o que se lembra da tragédia, como lidou com a dor e a culpa, de que forma o desastre influenciou sua vida e o que espera do julgamento que começou na última quarta-feira, 1º.
Os réus são Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no local: o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, que acendeu um artefato pirotécnico no meio do show, e o auxiliar de palco Luciano Bonilha Leão, acusado de tê-lo comprado. O fogo começou após o artefato incendiar uma espuma instalada no teto para prover isolamento acústico. Uma reação química teria feito o material liberar cianeto, que sufocou parte dos presentes na casa lotada. Os quatro foram indiciados por 242 homicídios com dolo eventual. O caso foi submetido a júri popular em um tribunal de Porto Alegre, presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto.
A defesa de Spohr alega que os verdadeiros culpados são os agentes públicos que deixaram a boate funcionar normalmente. “Meu cliente tem vivido a angústia de ter sido acusado de atuar dolosamente para a ocorrência da morte de inúmeras pessoas, mesmo ele obedecendo tudo que o poder público determinava na época para um empresário do ramo de casas noturnas. Ele é acusado pela mesma mão que abriu a porta da boate e permitiu o funcionamento dela”, diz o advogado Jader Marques, em nota. Os advogados dos músicos usam estratégia semelhante. “A gente vai conseguir provar, sim, que o Marcelo e o Luciano são inocentes. Não temos intenção de acusar ninguém, salvo os agentes públicos”, declarou, em uma transmissão ao vivo, Tatiana Borsa, que foi contratada por Marcelo Jesus dos Santos. Bruno Seligman de Menezes, advogado de Hoffmann, destaca que a casa tinha os alvarás do Corpo de Bombeiros e foi visitada por agentes do Ministério Público. “Se há irresponsabilidade de alguns, tem que haver a de todos”, afirma Menezes. No primeiro dia de julgamento, o auxiliar de palco Luciano Bonilha Leão chorou bastante e gritou: “Não sou um assassino”. Ele precisou ser atendido na enfermaria.
“Eu tenho feito um apelo por humanidade nesse período de julgamento, porque a gente vê muitas manobras da defesa dos réus, que tentam se vitimizar, quando eles só são vítimas do que eles mesmos foram responsáveis”, desabafou Gabriel Barros. Marcado definitivamente pela tragédia em Santa Maria, o ex-estudante de jornalismo trocou a comunicação pela psicologia — “muito em função do que aquilo me casou” —, integra um coletivo de sobreviventes e acompanha o julgamento. Segundo ele, não em busca de vingança, mas de justiça. “Para mim, é inquestionável a responsabilidade desses quatro réus, pela emboscada a que a gente foi submetido. Independentemente de haver ou não mais responsáveis, isso não tira a responsabilidade de quem está sendo julgado.”
Eu tinha 18 anos e fazia jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Era uma pessoa que não tinha o costume de sair, nunca tinha ido em boate, não era de festa e estava me dispondo a conhecer esse mundo. Na noite anterior ao incêndio, eu me meti num grupo de amigos, de colegas do curso, que iriam numa festa na Kiss também. Consegui ir com eles nessa festa, que, se não me engano, era de alguma turma da comunicação social, era meu grupo ali. Lá, eu conheci uma menina que fazia zootecnia na época, a gente conversou, ficamos juntos, eu conheci uma amiga dela, e fui convidado para ir no dia seguinte, quando teria a festa da zootecnia e de alguns outros cursos. Chegando o dia seguinte, eu fui com ela e mais duas amigas, uma que eu já conhecia e a outra que morava junto com elas. Logo na fila, até comentei que, no dia anterior, não tinha tanta na fila. Antes de entrar, encontrei amigos meus da época do colégio e acabei ficando junto com eles. Eram três. Encontramos mais um lá dentro e acabamos ficando nesse grupo, eu e mais quatro. Foi assim que se deu início à minha noite.
Naquela noite, a gente deu algumas voltas lá dentro. Eu ia acompanhando eles porque eu não conhecia como era essa vida em festa, em boate, então eu seguia, eles iam me guiando. A gente decidiu parar numa hora, num determinado lugar, que era na frente de uma cabine de DJ, onde o DJ não estava — ele estava em outra, de frente para o palco em que começou o incêndio. Nisso de dar voltas por lá, dois dos meus amigos continuaram, e eu e os outros dois decidimos ficar por ali, porque era desconfortável se mexer no lugar superlotado. Estávamos cansados de andar , queríamos ficar parados. Foi mais ou menos aí, depois que eles saíram, que a música parou. Foi o primeiro sinal de que alguma coisa estava acontecendo. Eu não tinha a visão do palco e, quando a música parou, começou um telefone sem fio de quem estava por ali, falando que era briga. Aí essa mensagem chegou até nós, eu virei para os meus amigos e falei: “Olha, acho que é briga”. Nisso que eu falei, dei alguns passos em direção a uma canto porque, junto com esse murmurinho, eu vi que as cabeças estavam se virando em direção ao palco para ver o que acontecia, porque, aparentemente, o tumulto vinha de lá. Foi quando eu vi alguém de camisa branca, sinalizando com os braços para sair, para se mexer, algo assim. Ele estava logo à frente do banheiro dos fundos, e fui. Eu tinha certeza que os amigos que estavam comigo me acompanharam nesse ímpeto que eu tive. Nisso, eu andei poucos passos, talvez uns quatro, porque se abriu um vão com as pessoas, por causa do tumulto que estava se iniciando, da movimentação em massa, e aí eu fiquei preso, porque as portas não estavam abertas.
De onde eu estava, as pessoas se encaminhavam para a entrada, porque para a saída tinha que dar uma volta imensa — o caminho formal da saída da boate desembocava na mesma saída pra rua e tinha que dar uma volta para passar no caixa. Eu só me enfileirei, junto com todo mundo e fiquei preso na multidão. Para mim, ainda era uma briga, eu não tinha visto nada. Eu só fui me dar conta de que era incêndio quando a fumaça chegou em mim, eu ainda estava no meio da multidão e as portas ainda não tinham aberto, o que demorou um pouquinho para acontecer. Eu lembro de ver as pessoas empurrando e gritando bastante. No primeiro relance, ainda era uma fumaça branca que ardia os olhos e o nariz. Então pensei: “Bom, como era briga, devem ter largado o gás lacrimogêneo aqui para dispersar”. Eu não tinha noção alguma do que estava acontecendo. No momento que eu terminei esse pensamento na minha cabeça, a fumaça já escureceu e, com a ardência e o calor, eu me dei conta de que era um incêndio. Eu pensei: “Vou colocar a gola da minha camisa na frente da boca e do nariz, vou tentar não gritar porque já tem gente gritando e eu vou precisar desse ar. E também vou tentar segurar a respiração porque doía para respirar”. Com isso, eu tentei manter a cabeça um pouco baixa, para manter a gola na frente da boca e do nariz e fui, segui o fluxo.
As pessoas estavam andando, eu estava esmagado entre elas. Eu sempre fui muito magro, e aos 18 anos era mais magro ainda, então não sei o quanto eu andei e o quanto eu fui “andado”. Eu lembro de me apoiar nas pessoas com meu braço e, ao mesmo tempo, não querer empurrar elas porque era muito difícil de manter o equilíbrio ali. Antes de chegar na primeira porta, eu já achei que não ia dar, porque não conseguia ver nada: a fumaça já tinha tomado conta e a luz também apagou, então eu só fui no tato com as pessoas que estavam na minha frente. Notei que estava passando pela primeira porta porque vi a silhueta dela dos meus lados, um relance de que eu estava passando por algum lugar. Duas vezes, eu tive um frio na barriga, senti que estava perdendo o equilíbrio e achei que fosse cair, mas não caí porque estava esmagado entre as pessoas, não tinha espaço para onde cair naquele momento, de tão apertado que estava.
Passei da primeira porta, dei um passo, não vi a saída. Eu dei outro meio passo, olhei pra cima, vi alguma coisa que me remeteu a uma luz de poste da rua através da fumaça. Sabe quando algo vai cair e você tem um reflexo rápido disso? O meu movimento foi esse, quando eu vi aquela coisa me atirei naquilo, e eu cheguei em pé na saída para a rua. Aquele momento ali para mim durou muito tempo, porque não tinha onde eu pisar que não fosse pisar em alguém, tinha muita gente caída na rua, gritando, se mexendo, tentando sair. Pareceu que eu fiquei meia hora escolhendo em quem eu ia pisar para sair de pé, e acabei escolhendo um cara com as costas mais largas que tinha ali, e passei, saí.
Daí começa outro episódio da noite, que é tão dramático quanto. No primeiro momento que eu saí, a primeira coisa que eu fiz foi pegar meu celular e ligar para a minha mãe, avisar o que tinha acontecido e pedir para ela me buscar. Ela não questionou nada e só foi. Eu desci a rua e tentei me recompor porque estava enjoado, desnorteado, me sentindo tonto, e hoje eu entendo que pode ter sido a fumaça que causou. Eu esperei um pouco ali sentado, uns dois minutos talvez, e levantei para procurar os meus amigos. Eu não os encontrei, mas ajudava as pessoas aleatórias a encontrar seus próprios amigos, consegui ajudar umas duas pessoas até minha mãe chegar. Quando ela chegou, veio com minha irmã mais nova, que tinha nove anos na época. A gente viu o tumulto, expliquei pra ela que estava procurando meus amigos e ela falou: “Não, fica aí, procura eles, que vou levar sua irmã para casa e já volto”. A gente se despediu e eu voltei ali para a frente da boate para procurar. Encontrei uma amiga minha, do curso, que estava ajudando uma amiga dela a encontrar o número de alguém no celular e desci a rua de novo para continuar procurando. Eu não tinha noção nenhuma de que tinha gente machucada, muito menos que gente tinha morrido.
Eu encontrei a menina que tinha conhecido na noite anterior, ela estava machucada, tinha um corte, estava com dificuldade para respirar, tinha um dedo quebrado, estava precisando de ajuda para se locomover. Ela tinha um grupo de amigas em volta dela, todas em pânico. desesperadas. Eu falei para essas amigas que eu me responsabilizava por ela, liguei para a minha mãe de novo, falei com quem eu estava e onde eu estava e a gente se encarregou de levá-la para o hospital. Foi o que a gente fez, carregamos ela para o carro, junto com uns guris aleatórios que estavam na rua e a levamos para o pronto-atendimento do [Hospital] Patronato, que a gente imaginava que era um local que não estaria lotado ainda. De fato, isso facilitou no cuidado depois. A minha mãe me conta, eu não me lembro, que me deram oxigênio lá no pronto-atendimento. Mas eu não lembro, só lembro de cuidar dela. Eu falava que não precisava de ajuda até porque quando eu estava acompanhando ela ainda na rua, eu ouvi um paramédico, alguém que saiu de uma ambulância, dizendo: “Se está respirando e andando, está bem”. E essa era a minha condição, então, eu pressupunha que estava bem, e ela não estava, porque não conseguia respirar direito e estava machucada, não conseguia caminhar direito. Naquela noite eu não pedi atendimento nem nada, não tive marcas físicas, machucados, queimaduras, nada disso.
Foi na manhã seguinte, quando a gente chegou em casa, por volta das 6 horas da manhã, 7 horas… Na rádio já estavam anunciando mais de 30 mortes, entre 30 e 50. Ali eu tive a dimensão de que tinha acontecido algo muito terrível, mas só pelo meio-dia que eu fiquei sabendo de números muito maiores, e dos meus amigos. Os dois que tinham dado aquela volta faleceram, e os outros que estavam comigo, que eu tinha certeza que estavam comigo, foram internados, em coma induzido. Eles sobreviveram, e a menina que eu ajudei, também. Aí veio a culpa de tudo, que eu senti por muitos anos. A culpa por não me certificar, a culpa por acreditar naquela época que qualquer pessoa que tivesse saído no meu lugar seria melhor que eu. São fantasmas que acompanham ainda. É muito doloroso conviver com isso e tentar elaborar. Ali por março, abril, eu comecei uma terapia que durou até por uns meses. No ano seguinte, eu comecei uma terapia que dura até hoje.
No meio do ano eu larguei o jornalismo. Por conhecer a terapia e perceber o quanto aquilo tinha potencial para mim, eu decidi trocar de curso e comecei a fazer psicologia. Me formei, hoje sou psicólogo, estou seguindo na vida acadêmica, fiz mestrado e agora estou no doutorado, muito em função do que aquilo me causou e ainda me causa. O sentimento se transforma: a culpa deu lugar à frustração, a uma certa raiva, mas eu não sei descrever essa raiva, ela é muito particular. É um pouco uma irritação com o descaso, a violência que a gente tenha que esperar tanto tempo para uma resposta digna. Eu consegui transformar parte dessa culpa em movimento, em ações, em projetos para a vida em prol do movimento que busca justiça para tudo isso que se passou. Vira uma dor imensa, uma dor emocional, uma dor de alma, sem explicação. Na verdade, tem explicação, e é isso que a gente está buscando hoje.
Um projeto subjetivo é acreditar que existe uma via através do meu curso, da minha vida acadêmica, que pode contribuir. Algo mais direto é o que estou envolvido ultimamente, e que me faz estar aqui no julgamento hoje, que é o envolvimento com os sobreviventes. No início do mês de novembro, a gente criou um coletivo de sobreviventes, um grupo no WhatsApp chamado ExpreCidade, para dispor aos sobreviventes que queiram participar. Justamente pela proximidade do julgamento, sabíamos que seria muito maçante o nível de informação que a gente receberia e praticamente inevitável lidar com isso. A ideia é dispor de um espaço coletivo onde cada um possa compartilhar o que quiser. Muitos ainda estão dando os primeiros passos quanto a essa história, explorando as possibilidade de falar seus relatos, de compartilhar aquela culpa que sentem. Na primeira semana de grupo, montamos uma carta aberta, com base nos relatos, nas conversas, nos testemunhos que apareceram. É uma série de movimentos que ajudam a gente a se apoiar nesse momento tão frágil no qual estamos.
A expectativa é muito grande. A gente está vivendo cada momento intensamente aqui com os familiares, está sendo um momento em que a gente tem que se apoiar muito um no outro. É uma expectativa de justiça. Eu tenho feito um apelo por humanidade nesse período de julgamento, porque a gente vê muitas manobras da defesa dos réus, que tentam se vitimizar, quando eles só são vítimas do que eles mesmos foram responsáveis. Isso não pode continuar impune. Para mim, a justiça não é o momento, sabe? Não estamos em busca desse momento de justiça, ela vai ser um contínuo que vai começar quando esse julgamento condenar os quatro réus. A partir do início desse contínuo, a gente vai garantir que a justiça ocorra quando forem criadas condições para que isso nunca mais aconteça, seja em projetos de lei, em conscientização do público. Para que não seja um episódio isolado de condenação, que ela proporcione efeitos saudáveis para todo mundo. E para que ninguém tenha que estar nessa posição que eu estou, de ter que fazer esses apelos, de lidar com essa dor durante muitos anos e que nunca vai sair da nossa história.
Os réus, se você for perceber, só se emocionam se algo toca a reputação deles. Eles não se emocionam com a dor de quem sofreu, de quem realmente é vítima. Isso fica muito nítido nos movimentos, nas ações, no que está sendo produzido pela defesa dos réus ali, a preocupação de zelar por uma reputação de que não quer ser assassino, mas que, de fato, tem sua devida responsabilidade nisso que aconteceu. É disso que o julgamento se trata: sobre os fatos, não é sobre o moral do indivíduo, se é assassino, se não é, se teve intenção ou não teve. É uma questão de assumir os riscos e as devidas responsabilidades, que nos fatos são claros. Isso, para mim, é inquestionável. Acaba sendo muito violento com a gente, que não sofre só quando está no plenário, sofre todos os dias há quase nove anos. Essa dor é infindável, e a gente não está aqui para pedir vingança, não tem nada a ver com isso. Estamos aqui para pedir justiça, nesse sentido que eu mencionei, que uma justiça seja começada nesse julgamento, porque ela não pode ter fim. Se tiver fim, se não forem feitas as coisas que precisam ser feitas, e não ocorrer a mobilização da própria sociedade como um todo, isso pode acontecer de novo, vai ter famílias que vão perder seus filhos e vai ter gente que vai precisar correr pela própria vida. Isso não é justo. Para mim, é inquestionável a responsabilidade desses quatro réus, pela emboscada a que a gente foi submetido. Independentemente de haver ou não mais responsáveis, isso não tira a responsabilidade de quem está sendo julgado.
Esse meu relato e meu esforço em dizer o que digo não vem sem trabalho anterior. Exigiu muito preparo interno, emocional. Sobretudo, isso é um apelo por justiça, por empatia a todos que estão diretamente ligados à tragédia, por solidariedade com essa dor, que é coletiva, e que é individual ao mesmo tempo, de cada um que viveu. E, principalmente, é um apelo por humanidade, que é algo que foi violentamente roubado durante esse período de espera. Quase nove anos de espera, ainda mais com o desaforamento a Porto Alegre [que foi feito a pedido dos advogados dos réus], machuca bastante e nos fragiliza ainda mais, enquanto os réus ainda são colocados nos holofotes por uma sociedade que carece de afeto para o nosso lado.